Título: Autoridade supranacional para a hidrovia
Autor: Rubens Barbos
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/03/2005, Espaço Aberto, p. A2

O governador de Mato Grosso, Blairo Maggi, promoveu na semana passada, em Cuiabá, importante e oportuno seminário internacional sobre infra-estrutura multimodal. Com a participação de mais de 200 empresários e técnicos, os principais temas discutidos foram a Rodovia Cuiabá-Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, e a Hidrovia Paraná-Paraguai. Governadores e prefeitos brasileiros e de Estados vizinhos examinaram também o potencial de incremento no comércio inter-regional no oeste do Brasil e Mercosul. Foram discutidas ainda ações políticas para estimular as relações do Brasil com Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai, Peru e Uruguai. Nos dois dias de reuniões, foram identificadas as dificuldades para viabilizar a rodovia e a hidrovia e foi examinado o impacto potencial da plena concretização dos dois projetos de infra-estrutura nas relações comerciais, turísticas e culturais entre os países diretamente beneficiados. O Estado de Mato Grosso, situado no centro do continente sul-americano, está numa situação marginal em relação à infra-estruturas de transporte com os países vizinhos e aos pontos por onde pode passa o fluxo de comércio exterior brasileiro. Apesar disso, o Estado vem ampliando, de forma significativa, sua participação em volume de produtos exportados, sobretudo em função da soja. Como coordenador de painel sobre a Hidrovia Paraná-Paraguai, acompanhei as discussões acerca das perspectivas de plena utilização dessa importante via de transporte. A Hidrovia Paraná-Paraguai ampliará a competitividade internacional do agronegócio no centro e sul do Estado de Mato Grosso e abrirá perspectivas de investimentos não só no setor agrícola e agroindustrial, mas também no de minerais. Tenho acompanhado as dificuldades de melhor aproveitamento da Hidrovia Paraná-Paraguai há perto de 20 anos. Creio haver chegado o momento de o setor privado e o governo voltarem suas atenções para esse projeto, que pode transformar-se num verdadeiro símbolo de integração sul-americana. Mercosul e América do Sul ocupam lugar de realce na política externa e na retórica do governo Lula. Nesse particular, foram dados passos significativos, porém de pouco impacto imediato do ponto de vista comercial, como a criação da Comunidade Sul-Americana de Nações e a assinatura do acordo Mercosul-Grupo Andino, ainda de alcance limitado. As dificuldades que cercam o aproveitamento pleno da hidrovia refletem também a baixa prioridade atribuída pelo poder público ao transporte fluvial, que tanto contribuiu para o rápido desenvolvimento de vastas regiões nos EUA e na Europa. Com uma rede de 43 mil km de rios, somente 10 mil km são utilizados. Apenas 150 empresas operam no sistema hidroviário brasileiro. Na matriz de transporte brasileiro, apesar de seus custos bastante inferiores, as hidrovias representam cerca de 14%, ante 60% de rodovias. No momento em que se fala em melhorar a competitividade do Brasil, o uso da malha fluvial pode reduzir entre 40% e 60% o custo da movimentação de carga para grãos e minérios. O descaso crônico em relação a esse meio de transporte é responsável pelas grandes dificuldades que hoje existem para o aproveitamento das hidrovias: insuficiência de recursos, infra-estrutura, conflitos na utilização das águas (a construção de hidrelétricas sem eclusas), as questões ambientais, jurídicas e burocráticas, a ausência de uma política de investimentos e a logística deficiente. Governo e setor privado deveriam trabalhar juntos nessa direção e transformar a hidrovia num fator significativo para o escoamento da crescente produção agrícola e de atração de investimento. Projeções conservadoras indicam que só no Estado de Mato Grosso, nos próximos dez anos, a produção de soja será ao redor de 40 milhões de toneladas. Não há como deixar de pensar estrategicamente e começar a criar as condições para atender às futuras necessidades de transporte e escoamento do produto. A responsabilidade pelo atraso no aproveitamento pleno da hidrovia deve ser repartida entre os cinco países que tratam de forma burocrática e com baixo nível decisório questões relevantes como investimentos, meio ambiente e o uso da hidrovia. Como forma de superar essa dificuldade, propus que fosse dada séria consideração ao estabelecimento de uma autoridade supranacional para gerir a hidrovia, a exemplo do que ocorre na Europa com o Danúbio e o Reno e, nos EUA, com o Mississippi. Existindo vontade política, a criação dessa autoridade retiraria das burocracias governamentais o tratamento do assunto e integraria de forma natural o setor privado na discussão e na solução das dificuldades que sempre existirão. Ao final do encontro, foi divulgada a Carta de Cuiabá, que, entre outros aspectos, destaca a importância da coordenação política entre os governos de Mato Grosso e de Mato Grosso do Sul, a Frente Parlamentar das Hidrovias da Câmara dos Deputados e o Ministério dos Transportes para ser atribuída prioridade à hidrovia no contexto de transporte intermodal; a abertura de amplo diálogo entre o governo estadual, o Ministério Público e o Judiciário para a busca de soluções alternativas para os impasses jurídicos existentes; e entendimento com o Ministério do Meio Ambiente para o estabelecimento de referenciais para a análise do aproveitamento de rios navegáveis para o transporte de mercadorias. A plena utilização da Hidrovia Paraná-Paraguai, se efetivamente incluída entre as prioridades do governo Lula, seria uma obra de grande visibilidade e ressaltaria concretamente a prioridade que o Brasil atribui à integração sul-americana, já que beneficiaria os cinco países por onde passa - Brasil, Bolívia, Paraguai, Argentina e Uruguai. Rubens Barbosa, consultor, presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da Fiesp, foi embaixador do Brasil nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha