Título: O futuro da OMC e seus desafios de governança
Autor: Maria Helena Tachinardi e Marcos Sawaya Jank
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/03/2005, Espaço Aberto, p. A2

Neste ano, a Organização Mundial do Comércio (OMC) completa o seu 10.º aniversário. A organização entra no terceiro milênio contando com a presença de 148 membros e uma multiplicidade de temas que abrangem desde os antigos e ainda mal resolvidos problemas na área do comércio de produtos agrícolas e têxteis até uma dinâmica e volátil agenda de novos tópicos na área de serviços, propriedade intelectual, investimentos e meio ambiente. O amplo leque de novos assuntos, a ampliação dos membros - na sua grande maioria, países em desenvolvimento demandando maior participação e tratamento diferenciado -, as dificuldades para solucionar controvérsias comerciais e a crescente interferência de organizações da sociedade civil vêm produzindo sucessivos impasses, lentidão, desilusões e graves problemas de governança numa organização que tem a missão, quase impossível, de construir regras e disciplinas por consenso. A Rodada de Doha tem a ambição de propor regras mais justas para favorecer o desenvolvimento dos países membros, mudando, inclusive, a própria forma de obtenção de consenso na organização. Exemplo disso é a recente consolidação do G-20, o grupo de países em desenvolvimento que atua sob a liderança do Brasil e busca avanços concretos no tema da agricultura. "O G-20 mostrou que, numa organização complexa como é hoje a OMC, é preciso construir o consenso no meio, e não mais de cima para baixo, como ocorria no antigo Quad (EUA, União Européia, Canadá e Japão)", diz Celso Lafer, ex-ministro de Relações Exteriores. Lafer foi um dos oito especialistas internacionais escolhidos pelo diretor-geral da OMC, Supachai Panitchpakdi, para fazer uma reflexão sobre os problemas e desafios institucionais hoje enfrentados pelo sistema multilateral de comércio e como este pode ser reformado e mais bem equipado para lidar com futuras responsabilidades e demandas. O resultado é o relatório The Future of WTO - Addressing Institutional Challenges in the New Millennium, que foi discutido em 25 de janeiro, em sessão especial do Conselho Geral da OMC e já está disponível no site da entidade (www.wto.org). A reflexão foi coordenada pelo ex-diretor-geral do Gatt e da OMC Peter Sutherland. Os outros autores são também nomes conhecidos nas áreas de comércio e direito internacional: Jagdish Bhagwati, Kwesi Botchwey, Niall Fitzgerald, Koichi Hamada, John Jackson e Thierry de Montbrial. Supachai explica, logo de início, que o relatório não é sobre a Agenda do Desenvolvimento da Rodada de Doha, mas sobre o próprio futuro da OMC enquanto instituição com competências para regular o comércio. Tema central do documento é a preocupação dramática com o "spaghetti bowl", expressão cunhada por Bhagwati para definir o emaranhado de acordos preferenciais de comércio (hoje são mais de 300 no mundo todo) e os danos que estes provocam ao princípio central do Gatt e da OMC: a não-discriminação. O relatório sugere que na Rodada de Doha os países desenvolvidos se comprometam a fixar uma data para a completa eliminação de suas tarifas de importação. Com isso se garantiria uma parte importante do funcionamento da cláusula de nação mais favorecida, ou seja, a não-discriminação comercial. Outra recomendação é que sejam instituídas disciplinas efetivas de revisão e julgamento dos mecanismos de política comercial (Trade Policy Review Mechanisms) propostos nos acordos preferenciais. O consenso sempre foi a regra de ouro do Gatt e da OMC no processo de tomada de decisão. Uma das recomendações é que os membros da OMC peçam ao Conselho Geral que adote uma declaração no seguinte sentido: se um país tiver a intenção de bloquear uma medida, que foi apoiada por amplo consenso, deverá fazê-lo somente se for por escrito, explicando que a razão se prende a um interesse vital nacional. "Quaisquer medidas ou reformas que venham a criar uma espécie de 'veto diplomático' ou mesmo oportunidades para anular ou mudar aspectos centrais do relatório final do painel devem ser severamente rejeitadas", recomendam os autores. A conclusão é que os procedimentos de solução de controvérsias da OMC vêm funcionando a contento e que, portanto, são necessárias cautela e experiência antes de se empreenderem mudanças dramáticas no sistema. Um dos capítulos aborda o papel do secretariado e a função do diretor-geral. A OMC é uma organização comandada por seus próprios membros, que produzem as normas que os países irão cumprir. "No entanto", argumenta Celso Lafer, "a função do diretor-geral não deve ser apenas a de quem faz a diplomacia de opinião pública da organização. Achamos que ele deve ter uma função dentro da dinâmica do processo decisório." Função que seria a de um "tertius", um terceiro institucional que seria uma espécie de "guardião" dos tratados do sistema. Para tanto, justifica Lafer, o diretor-geral necessita de um secretariado competente e eficiente para lidar com as dificuldades, mais bem remunerado e com maior número de funcionários. Outro imperativo do processo é "desdramatizar as reuniões bianuais". Nesse sentido, o relatório propõe a realização de reuniões anuais para evitar as responsabilidades e os traumas das conferências ministeriais, nas quais se tenta desesperadamente produzir resultados num curto e confuso espaço de tempo. O relatório traz um conjunto oportuno e relevante de recomendações para o aprimoramento do sistema multilateral de comércio, que deveriam ser discutidas em profundidade em cada país membro da organização, e mais particularmente no Brasil, nação que ocupa posição de destaque e de responsabilidade na OMC. Como potência média importante no cenário internacional, o Brasil tem muito a ganhar com o fortalecimento do multilateralismo e o melhor enforcement das decisões da organização. A complexidade do comércio internacional, nos dias de hoje, exige que façamos uma reflexão profunda sobre cada recomendação deste documento, que possa posteriormente traduzir-se em mudanças efetivas em favor de um mundo mais justo e eqüitativo. Maria Helena Tachinardi, jornalista, é diretora de Comunicação do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone). Marcos Sawaya Jank é livre-docente da FEA-USP e presidente do Icone