Título: Kirchner pede boicote contra a Shell
Autor: Ariel Palacios
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/03/2005, Economia, p. B1

O presidente Néstor Kirchner convocou os argentinos a um "boicote nacional" contra a empresa de combustíveis Shell. "Não há que comprar coisa alguma da Shell", disparou Kirchner ontem, em discurso na Casa Rosada. "Não devemos comprar sequer uma latinha de óleo", acrescentou ele, furioso com os aumentos de 2,6% a 4,2% nos preços do óleo diesel e da gasolina, implementados pela companhia no início da semana. A Bolsa de Buenos Aires, nervosa com a alta de juros nos Estados Unidos, ficou mais inquieta com o ataque de Kirchner e fechou em queda de 3,7%. Nunca, desde a volta da democracia em 1983, um presidente argentino havia convocado um boicote contra uma empresa estrangeira.

Kirchner - que, segundo seus assessores, acompanha diariamente com intensa paranóia todos os assuntos referentes à área petrolífera e de combustíveis - acusou a Shell de "não colaborar" com o processo de recuperação da economia argentina.

A Confederação Argentina de Médias Empresas e a Central dos Trabalhadores Argentinos protestaram contra os aumentos ontem, na frente da sede da Shell no centro portenho. Em vários bairros de Buenos Aires, grupos de piqueteiros (desempregados que bloqueiam estradas e ruas para pedir dinheiro e comida) atenderam ao chamado de Kirchner e barraram as entradas dos postos da Shell. "Abastecer o carro nos postos da Shell é uma atitude antiargentina", afirmaram os piqueteiros.

INFLAÇÃO

A convocação de Kirchner para o boicote coincide com a primeira grande ofensiva do governo contra a inflação, que no primeiro bimestre cresceu 2,5%. Segundo a consultoria Equis, esse aumento transformou em 'novos pobres' 188 mil pessoas dos setores mais arruinados da classe média argentina. Se o ritmo de inflação persistir, em 12 meses o país terá mais 2,4 milhões de 'novos pobres'.

Vários consultores prevêem que a inflação terá aumento de 1% em março. A alta preocupa, pois a meta de inflação para o ano no Orçamento Nacional é de no máximo 7,9%. Analistas apontam que, se a inflação passar de 12%, será difícil controlar.

"Não permitirei um novo crescimento da inflação. Vamos trabalhar com toda a responsabilidade, seriedade e firmeza. Não ficarei quieto vendo os preços subirem", ameaçou ontem o presidente.

Horas antes de convocar o boicote contra a Shell, Kirchner criticou os produtores de carne. O preço do produto subiu 20% neste ano. Pesquisa do Clarín Online indicou que 91,7% dos internautas atenderiam ao pedido de Kirchner e não comprariam produtos de empresa que aumente preços.

A inflação também elevou o valor da dívida pública argentina com os credores privados, já que os novos títulos (que substituem os antigos, em estado de calote) têm data de emissão do dia 31 de dezembro de 2003 (embora comecem a ser cotados oficialmente só a partir de 1.º de abril). Como 47% dos novos títulos estão em pesos reajustados de acordo com a inflação, o valor da nova dívida já aumentou em US$ 1,44 bilhão com a inflação acumulada de 8,76% nos últimos 14 meses.

O FANTASMA DO PAÍS

Habitué dos lares argentinos por décadas, o fantasma da inflação teve seu momento de glória em 1989, quando chegou a 4.923,6% e levou o governo do presidente Raúl Alfonsín à renúncia. Um ano depois, seu sucessor, o presidente Carlos Menem, enfrentou novo período hiperinflacionário, que chegou a 1.343,9%. Em março de 1991, Menem estabeleceu a conversibilidade econômica, instituindo a paridade econômica entre o dólar e o peso. A inflação desapareceu por uma década.

O fim da conversibilidade, em janeiro de 2002, levou o país à desvalorização da moeda. No meio do caos social, econômico, político e financeiro, a inflação voltou a galopar. Foi detida graças ao estancamento da economia do país e a medidas de Roberto Lavagna, convocado para ocupar o posto de ministro da Economia, em abril de 2002, pelo presidente provisório Eduardo Duhalde.