Título: O veto que faltou
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Fonte: O Estado de São Paulo, 11/02/2005, Notas & Informações, p. A3

Dois fatos adquirem relevo com a sanção presidencial ao projeto da nova Lei de Falências, também chamada de Lei de Recuperação de Empresas. O primeiro e mais importante deles é a alienação - que se nota com uma freqüência preocupante - do Congresso face aos interesses nacionais claramente explicitados. Há bem mais de uma década, a Lei de Falências ainda vigente - a que foi sancionada esta semana só entrará em vigor dentro de 120 dias - dava sinais evidentes de velhice e de inadequação a um ambiente econômico moderno e dinâmico.

Aprovada em 1945, a lei não deixava às empresas em dificuldades financeiras e a seus credores nada além da escolha de uma de duas soluções igualmente desastrosas, do ponto de vista econômico e social: a falência ou a concordata. A falência significava a imediata destruição de empregos e ativos e não eram raros os casos de credores de importâncias relativamente pequenas que preferiam pedir o fechamento da empresa a negociar o recebimento de seus créditos. Já a concordata, decretada a pedido da empresa, permitia a continuidade de suas atividades, freqüentemente em caráter precário, num processo que praticamente não tinha prazo para terminar e que, a não ser nos raros casos em que o devedor contou com o apoio de seus credores, não permitia a recuperação da empresa, apenas prolongando-lhe a agonia.

Em 1993, o presidente Itamar Franco enviou ao Congresso o projeto da nova Lei de Falências, propondo soluções mais efetivas para a recuperação das empresas em dificuldades financeiras. O projeto, desde o início de sua tramitação, foi saudado como uma medida necessária para acompanhar o processo de modernização da economia nacional. Contra ele manifestaram-se apenas alguns pequenos partidos de oposição e o PT, que à época entendia que o projeto prejudicaria os trabalhadores das empresas atingidas pela falência ou concordata. E com isso o projeto ficou em banho-maria no Congresso até que, em 2003, com o PT na Presidência da República, a antiga oposição "descobriu" que a reforma da Lei de Falências era essencial para a consolidação da base produtiva e a ampliação da estabilidade macroeconômica. Cuidou, então, o PT de reformular o projeto original e de obter, no Congresso, o consenso que antes bloqueava sem enfrentar maiores resistências dos partidos que constituíam a maioria parlamentar.

Graças a essa politicalha, um projeto que os setores produtivos e os meios financeiros consideravam essenciais para remover obstáculos ao crescimento modorrou durante 11 longos anos no Congresso.

O segundo ato que chama a atenção, no caso da nova Lei de Falências, é que ela foi sancionada sem que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vetasse o controvertido artigo 199, que dá tratamento diferenciado às empresas de transporte aéreo. Leis específicas que regulamentam a atividade de concessionárias de serviços públicos proíbem a essas empresas o recurso à concordata. É o caso das empresas do setor financeiro e da aviação civil, que podem falir ou sofrer liquidação, mas não podem ficar no limbo da concordata. Por extensão, não deveriam ter o benefício da recuperação judicial ou extrajudicial, o que a nova lei reconheceu explicitamente no artigo 198. Tratava-se, na verdade, de uma medida de proteção dos usuários de serviços públicos. No caso das empresas aéreas, a exigência fundamental para que exerçam a concessão é que estejam em condições econômico-financeiras que lhes permitam operar com segurança e regularidade. Ora, a empresa em concordata ou, agora, em recuperação, por definição não atende a essas condições. E a função do governo, mais do que atender ao interesse da empresa, é garantir a regularidade e a segurança do vôo.

Esse princípio salutar era respeitado no texto do projeto original. Em 2003, no entanto, o relator do projeto na Câmara, atendendo às pressões da bancada que defende os interesses das empresas aéreas - a Transbrasil, a Vasp e a Varig já estavam em prementes dificuldades -, introduziu a exceção, beneficiando as companhias de aviação com o recurso à recuperação judicial. A contrapressão do governo foi mais forte e a Câmara aprovou o projeto sem aquele penduricalho. No Senado, porém, o benefício voltou ao texto e assim foi aprovado.

Não vetando a excrescência, o presidente da República abre um precedente perigoso para a segurança de vôo.