Título: 'Princesa guerreira'
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Fonte: O Estado de São Paulo, 12/02/2005, Notas e Informações, p. A3

N o seu primeiro tour como recém-nomeada titular da diplomacia americana, a secretária de Estado Condoleezza Rice passou a semana entre Londres, Berlim, Varsóvia, Ancara, Jerusalém, Ramallah, Paris, Luxemburgo e Bruxelas. A ex-conselheira de segurança nacional do presidente George W. Bush tinha três objetivos: debutar nas suas novas funções; lançar uma ofensiva de charme e sofisticação intelectual para reaproximar Europa e Estados Unidos em torno de uma grandiosa agenda pela liberdade no mundo; e, mais prosaicamente, preparar os europeus para a primeira visita do seu chefe desde a reeleição.

A chère Condi, como a ela se dirigiu o chanceler francês Michel Barnier, foi decerto ouvida com mais atenção e tratada com mais deferência do que o seu hamletiano antecessor Colin Powell, a quem nunca um anfitrião europeu imaginaria no papel de porta-voz pessoal do presidente americano - como é o caso de sua preceptora, amiga próxima e colaboradora absolutamente leal. O chanceler Gerhard Schr¿der tratou-a com uma efusÒo que nÒo se diria germÔnica. O presidente Jacques Chirac beijou-lhe galantemente a mÒo ao recebÛ-la e na despedida do Eliseu.

Mas, externando a provßvel reaþÒo Ýntima dos seus interlocutores, o semanßrio parisiense Le Point a apelidou com acuidade "princesa guerreira", o que faz duvidar de que os seus dotes tenham lhe permitido projetar uma imagem melhor dos Estados Unidos de Bush. Agressiva, ou petulante, ela foi de fato ao menos uma vez, na conversa com o seu hom¾logo russo, Sergei Lavrov, em Ancara. Segundo o pr¾prio Departamento de Estado vazou, Condoleezza repreendeu o ministro - com razÒo, alißs - pelos retrocessos da democracia na R·ssia de Putin (com quem Bush se reunirß na Rep·blica Checa).

Na Franþa, que em 2003 liderou na ONU a oposiþÒo Ó planejada invasÒo do Iraque - e por isso devia ser "punida", disse Ó Úpoca a conselheira de Bush -, ela deixou a beligerÔncia de lado ao falar no renomado instituto Sciences-Po de Paris. Conciliadora, disse que o seu paÝs s¾ terß a ganhar se associando a uma Europa forte para construir um mundo melhor. "Esta Ú uma oportunidade sem precedentes para a nossa parceria transatlÔntica", declarou, propondo fazer da busca da liberdade global "o supremo princÝpio organizador do sÚculo". O ex-presidente Giscard d'Estaing viu nisso "a nova linha" da diplomacia americana.

Parece que ele foi precipitado. Em um cafÚ da manhÒ com um grupo de intelectuais franceses, na embaixada americana, Condoleezza se referiu ao IrÒ como "um Estado totalitßrio" - expressÒo historicamente reservada aos regimes comunista e nazista. (Jß o PaquistÒo do ditador Pervez Musharraf estaria "no bom caminho".) Desde dezembro, quando se noticiou que forþas especiais americanas vÛm agindo em territ¾rio iraniano, ganhou corpo o temor de que os Estados Unidos, ou Israel, poderiam atacar as instalaþ§es nucleares que a teocracia de TeerÒ diz servirem a fins pacÝficos e Washington insiste destinarem-se Ó produþÒo da bomba.

Em Londres, numa entrevista dominada pelo assunto, Condoleezza dissera que os EUA, "por ora", nÒo planejam atacar o IrÒ. Depois, em Paris e Bruxelas, criticou as tratativas anglo-franco-alemÒs para que o IrÒ, em troca de compensaþ§es econ¶micas e polÝticas, desista de seu programa de enriquecimento de urÔnio. Ela reiterou nÒo s¾ a contrariedade de Washington com o esquema - meio caminho andado para o seu fracasso -, como a intenþÒo de pedir ao Conselho de Seguranþa sanþ§es aos iranianos, caso a via diplomßtica nÒo leve a nada. Ao mesmo tempo, o presidente Mohammad Khatami repetiu que o IrÒ nÒo quer a bomba, mas nÒo abrirß mÒo de seus planos nucleares.

A sensaþÒo Ú de volta ao passado. Hß dois anos, a insistÛncia americana em destruir as "armas de destruiþÒo em massa" de Saddam Hussein foi o que separou os Estados Unidos da Franþa, R·ssia e Alemanha. Agora, Ú a possÝvel bomba iraniana. Condoleezza ouviu em Paris que os europeus atÚ se resignariam a conviver com um IrÒ apto a enriquecer urÔnio, desde que sob estrita vigilÔncia internacional. A idÚia Ú abominßvel para Washington. Mas a Europa nÒo perde de vista que os EUA perdoaram o PaquistÒo por ter feito a bomba e exportado tecnologia para fazÛ-la, fingem ignorar o arsenal at¶mico israelense e vacilam diante da CorÚia do Norte - que ainda anteontem se declarou potÛncia nuclear.