Título: ¿Mulher honesta¿ e outros absurdos
Autor: Simone Iwasso
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/03/2005, Vida, p. A21

Sai a figura no Código Penal, mas restam questões como aborto, planejamento familiar e violência doméstica - temas de acirrado debate

A mulher brasileira tem carro projetado para atender às suas necessidades, mas não dispõe de uma lei específica para punir o homem que a espanca. Aproveita a independência financeira e a liberdade no exercício de sua sexualidade e, contudo, é julgada moralmente quando sofre abuso sexual. Pode se beneficiar de uma série de inovações médicas, porém teme mais a violência doméstica do que o câncer de mama. No ano em que deixou de ser "honesta" no Código Penal, está com seu corpo, e os direitos relativos a ele, em evidência. Nessa realidade contraditória, o Dia Internacional da Mulher de 2005, celebrado depois de amanhã, estará associado no País à discussão sobre a revisão da criminalização do aborto, a ampliação do acesso ao planejamento familiar e aos métodos contraceptivos, a briga por uma lei própria para julgar seus agressores e a titularidade em programas sociais e moradias populares. Uma agenda de movimentos de mulheres que só agora ganhou aceitação suficiente para ser adotada pelo governo e colocada em discussão.

A proposta foi feita pela Secretaria Especial de Políticas para Mulheres e as reações adversas, de grupos religiosos e conservadores, começam a chegar, esquentando um debate que mexe com a mulher - e com os valores morais nela depositados.

DEFESA DA HONRA

Observando a situação em números, há avanços e desrespeitos em todas as esferas de poder. "O Brasil segue uma tradição patriarcal. A mulher é vista como ser fragilizado apenas por ser mulher. Isso ainda está presente na sociedade e no sistema judiciário e é o que precisa ser mudado para conseguirmos uma igualdade efetiva", diz a promotora Luiza Nagib Eluf, autora dos livros Paixão no Banco dos Réus e Crimes contra os Costumes e Assédio Sexual.

A figura da "mulher honesta" - virgens ou casadas - e o crime de adultério, por exemplo, foram abolidos da lei brasileira no mês passado. Mas o País ainda aceita o argumento da legítima defesa da honra para absolver ou atenuar a pena de homens que matam mulheres, segundo estudo do Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher. "Isso não existe na lei, foi criado nos anos 50 e ainda é aceito. A vítima se transforma em réu por um julgamento moral", diz a advogada Valéria Pandjiarjian, uma das autoras da pesquisa.

Dos 42 casos analisados entre 1999 e 2003 nos quais assassinos usaram essa tese nos tribunais, 23 foram absolvidos. "Na esfera doméstica, a violência é ainda mais ampla. Ainda não temos uma lei específica e o agressor é julgado de acordo com uma lei criada para crimes de menor potencial ofensivo. É uma briga que vamos comprar neste ano", completa.

VIOLÊNCIA, A PREOCUPAÇÃO

Dessa maneira, ao completar 20 anos da primeira Delegacia da Mulher, o Brasil tem essas instituições em menos de 10% dos municípios. Segundo pesquisa do Ibope, encomendada pelo Instituto Patrícia Galvão no final do ano passado, a violência contra a mulher é considerada o maior problema do sexo feminino: 30% dos 2.002 pesquisados em todo o País apontaram essa como a primeira preocupação, seguida, com 17%, pelo câncer de mama e útero.

"Olhando a imagem que é vendida da mulher, parece que os direitos estão consolidados e reconhecidos por todos, quando, por trás dessa imagem de vitória, beleza e sucesso, há violência, injustiça e muito preconceito, inclusive nas esferas legais", diz a socióloga Wânia Pasinato, do Núcleo de Estudos da Violência da USP.