Título: Muitas dúvidas ainda sobre a saúde do papa
Autor: Marco Lacerda
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/03/2005, Vida, p. A23

Boletins do Vaticano, apontando melhora de João Paulo II, são vistos com ceticismo nas ruas de Roma; cúpula da Igreja já estuda o que fazer no caso de uma renúncia

ROMA - "Um papa não fica doente, apenas morre." Poucas vezes o velho adágio romano foi tão lembrado quanto nas últimas semanas, para expressar o ceticismo, sobretudo da imprensa, em relação aos boletins oficiais divulgados pela Santa Sé sobre o estado de saúde do papa João Paulo II. O mesmo adágio tem sido usado com freqüência para traduzir a perplexidade reinante na Igreja sobre o que fazer quando - por doença, velhice ou insanidade - o papa torna-se incapaz de exercer o cargo para o qual foi eleito. O direito canônico tem normas claras para o caso de renúncia voluntária do papa, mas nenhum dispositivo para tirá-lo do trono. Trata-se de um dos raros postos vitalícios ainda existentes. Por isso, com certeza, um outro dito popular é repetido a boca pequena em Roma: "Melhor um papa morto que doente". Já se foi o tempo em que o bem-estar do papa era assunto exclusivo da Cúria. Nesta era de informação global instantânea, em que boletins médicos circulam a velocidade de cruzeiro, é impossível, até para o Vaticano, manter a verdade fora do domínio publico. "Se fosse o meu pai, eu não permitiria que o vissem nesse estado na televisão", diz Luca Barbieri, dono de uma loja de presentes nos arredores da praça de São Pedro.

Mas foi do próprio doente a decisão de aparecer na janela do hospital Agostino Gemelli, na semana passada, com a mão na garganta indicando sua impossibilidade de falar. Estava em ação, mais uma vez, um dos maiores comunicadores dos últimos tempos, falando sem o auxílio das palavras, com a tarimba de quem sabe que aquela imagem viajaria pelo mundo levando a mensagem que lhe interessa: a Igreja ainda tem pastor. Amanhã, o papa aparecerá novamente na janela, segundo confirmou o porta-voz do Vaticano, Joaquín Navarro Valls.

"Este papa não renuncia", afirma Gregory Waldrop, consultor para assuntos religiosos da rede de televisão CBS, em Roma. "Mas deveria, porque já não é mais o papa ao qual o mundo se acostumou. Pouco restou do peregrino incansável que beijou o chão de quase todo o planeta, autor de documentos e livros importantes para a Igreja." A opinião é partilhada por José de Vera, assessor de imprensa da Companhia de Jesus, ordem religiosa que, por obrigação de voto, deve obediência ao papa: "Ele apenas move a boca, já não fala e talvez não volte a falar". Segundo o jesuíta, começa a formar-se entre os cardeais a opinião de que a atual situação só é sustentável até junho.

IMAGINAÇÃO

Até lá continuará sendo testada a imaginação daqueles que, por quase três décadas, souberam utilizar com talento o poder da mídia para difundir a mensagem de João Paulo II. Mas, da mesma forma como as portas se abriram espontaneamente para a imprensa registrar imagens do papa perdoando Mehmet Ali Agca, o homem que tentou matá-lo em 1981, "chegou a hora de se abrirem para revelar com franqueza o seu estado de saúde", diz Waldrop. Por enquanto, ainda é considerado desrespeitoso discutir em público a saúde deste que é tido como um dos papas mais vigorosos da história. Talvez por isso o porta-voz do Vaticano ainda divulgue, uma vez por semana, boletins considerados anedóticos, entre jornalistas, por insistirem em que tudo vai bem, quando é alarmante sua condição física.

"E óbvio que o papa não tem mais condições de desempenhar atividades básicas, como caminhar e falar", diz um médico do hospital Gemelli. Por mais embaraçoso que seja, começa a surgir na Igreja a preocupação de que, em breve, se tornará impossível para ele comandar seu rebanho com um bilhão de membros. Neste caso, o direito canônico propõe uma única saída: a renúncia voluntária. Para ser aceita, ela deve ser feita e manifestada livremente, sem necessidade de ser aprovada por ninguém.

Os especialistas em direito canônico não saberiam o que fazer diante de uma eventual renúncia papal. Espera-se que ele simplesmente se afaste, deixando o cargo vazio e permitindo a realização de um conclave. Onde se refugiaria um papa demissionário ainda é um mistério. O próprio João Paulo II já disse: "Não há lugar na Igreja para um papa emérito". Por isso promete manter-se no cargo "por quanto tempo Deus quiser".

A preocupação maior é que, a uma certa altura, ele entre em coma. "A máquina tem que continuar", diz o cardeal argentino Jorge Mejia. "Não será um problema grave se o papa permanecer em coma por um mês. Depois disso, alguma decisão terá de ser tomada", acrescenta o cardeal.