Título: Uma trinca na barragem
Autor: CELSO MING
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/04/2005, Economia, p. B2

Mês após mês, os rombos da economia americana não param de crescer. Como é recorde atrás de recorde, o noticiário sai desgastado e os analistas estão de tal forma acostumados com a repetição que parecem ter perdido a noção dos riscos. E, no entanto, o vazamento desce por uma trinca da barragem. Há dois dias, o Departamento do Comércio dos Estados Unidos revelou que, em fevereiro, as importações americanas ficaram US$ 61 bilhões mais altas do que as exportações. Esse número projeta um déficit comercial de US$ 717 bilhões ao longo de 2005, 16% maior que o do ano passado.

Para que a onda de dólares não engolfe o mundo, bancos centrais e investidores estão remetendo de volta aos Estados Unidos cerca de US$ 3 bilhões por dia útil, em troca de títulos do Tesouro e de outros ativos em dólares. Essa operação ajuda a financiar outro rombo, o do orçamento norte-americano, de aproximadamente US$ 550 bilhões por ano. Essa troca transfere para os Estados Unidos cerca de 80% dos capitais disponíveis no mundo, que realimentam a roda consumista.

Este é um jogo complementar, que satisfaz os interesses de curto prazo das partes nele envolvidas: os Estados Unidos arrumam cobertura barata para seus rombos e o resto do mundo encontra mercado para sua produção.

Muito economista com boa quilometragem rodada ainda argumenta: o que é um déficit comercial de apenas 5% ou 6% do PIB para uma economia que detém o monopólio da moeda de reserva do mundo? É gente que se nega a enxergar que, na outra ponta da corda, os bancos centrais que amontoam reservas em dólares são obrigados a derramar moeda local e que, se não houver outros, há limites monetários a observar.

Outros alertam para os mais diretamente envolvidos, que não há opção melhor e que a simbiose continuará por muito tempo.

Reflexões assim são como cachaça, que alegra o coração e afasta a mente dos problemas a enfrentar. Em artigo publicado no Estadão de ontem, o ex-presidente do Federal Reserve (banco central dos Estados Unidos) Paul Volcker teve a coragem de denunciar a falsa euforia. Ele avisa que os americanos estão consumindo demais, "como se não houvesse amanhã"; que "a poupança pessoal nos Estados Unidos praticamente sumiu"; e que a economia mundial "está patinando sobre uma camada de gelo cada vez mais fina".

O atual presidente do Federal Reserve, Alan Greenspan, também tem alertado para a nova exuberância irracional. Quantas vezes ele já não advertiu que o déficit em conta corrente (déficit das contas externas) não tem sustentação a longo prazo? Greenspan tem dito que o risco é de que sobrevenha o dia em que os investidores exigirão mais juros para incorporar ativos em dólares a suas carteiras ou, simplesmente, em que não mais acumularão reservas porque saberão que perderiam no câmbio mais do que o rendimento que obteriam com juros.

Volcker bate no mesmo tambor: "Em algum momento, a sensação de confiança nos mercados de capitais que hoje tão benevolentemente sustentam o fluxo de recursos para os Estados Unidos e para a crescente economia mundial pode acabar. Então, algum acontecimento ou uma combinação de eventos pode surgir para tumultuar os mercados com uma volatilidade danosa tanto no câmbio como nas taxas de juros."

Ninguém sabe quando virá o ajuste e se será suave ou violento. Quem viver verá. Mas não dá mais para ignorá-lo. Do ponto de vista do interesse do Brasil, a prudência manda que, diante da incerteza, é melhor preparar-se para a pior hipótese.

Serão tempos em que os capitais voltarão a se entocar e poderão rejeitar os títulos brasileiros. Isso exige controle sobre a dívida e sobre as contas públicas. "O que pode ser deixado para depois, em geral, o é - e então será tarde demais", adverte Volcker.