Título: Operação charme de Condoleezza
Autor: Timothy Garton Ash
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/02/2005, Internacional, p. A22

Ofensiva diplomática na Europa é uma tentativa de mudar a imagem de Bush de agressor para a de pacificador

Dizem-nos que Condoleezza Rice recebeu seu incomum primeiro nome porque seus pais gostavam da expressão musical italiana con dolcezza, que significa "com doçura". Mas o que con doleezza poderia significar? Um talentoso tradutor italiano me diz por e-mail que "isto não sugere imediatamente doçura a um ouvido italiano". Mas não há dúvida de que a nova secretária de Estado conduziu uma ofensiva de sedução impressionante durante sua turnê relâmpago pela Europa. Ela apresentou uma face mais elegante, pronunciou palavras mais delicadas e tocou uma música mais doce do que aquela que maioria dos europeus passou a associar ao governo Bush nos últimos quatro anos. A grande estratégia que ela revela, em público e em particular, também tem substância surpreendentemente ambiciosa. No mínimo, merece ser estudada com cuidado.

Além disso, ela teve sorte. Seu discurso conciliatório em Paris na semana passada coincidiu com o aperto de mãos entre o primeiro-ministro israelense, Ariel Sharon, e o presidente da Autoridade Palestina, Mahmud Abbas. Esta foi uma dádiva resultante apenas em pequena medida do trabalho de Washington. O presidente a quem Condoleezza serve tão fielmente, George W. Bush, há tempos inspira-se no exemplo de Ronald Reagan. Como Reagan, ele quer que seu primeiro mandato, no qual foi demonizado como um fomentador da guerra por muitos europeus, seja seguido por um segundo mandato que o inclua nos livros de história como pacificador e disseminador da liberdade.

Mas Reagan pôde fazer isso porque o principal rival geopolítico dos EUA produziu um líder chamado Mikhail Gorbachev. Até recentemente, era difícil ver de onde viria o Gorbachev de Bush. Agora há uma chance de o Gorbachev de Bush se chamar Abbas.

Eu sei, eu sei. Isto é diferente em muitos aspectos. E a nova aurora do otimista é o falso alvorecer do pessimista. Mas comecemos com a boa notícia: há um desenvolvimento na política americana e um momento de oportunidade no Oriente Médio. Os dois estão ligados.

O cerne do argumento de Condoleezza é mais ou menos o seguinte: o maior desafio estratégico de nossa época está no Oriente Médio mais amplo. É dali que surgiram os terroristas que atacaram as Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001, e é ali que o extremismo islâmico ainda está sendo cultivado. A pobreza pode contribuir para o problema e deve ser combatida, não só nos territórios palestinos, mas Osama bin Laden estava longe de ser pobre. As causas primárias são políticas. Estar livre da necessidade importa; muito mais importante é a necessidade de ser livre.

Em choque depois do 11 de Setembro, o governo Bush começou com uma resposta política e militar. Ele acertaria alvos, mesmo se às vezes acertasse o alvo errado. Agora reconhece que o tratamento das causas subjacentes do terror requer mais mobilização de meios econômicos, políticos e culturais, em prazo mais longo. "Até mais importante que o poder militar e mesmo econômico", disse Condoleezza em Paris na terça-feira, "é o poder das idéias". Assim, a ênfase mudou da guerra ao terrorismo no curto prazo para da guerra à tirania num prazo mais longo. A analogia pós-11 de Setembro era com a 2.ª Guerra; a analogia no segundo mandato é com a guerra fria. Condoleezza, cuja vida acadêmica concentrou-se na guerra fria, freqüentemente faz comparações com os anos formadores do fim da década de 40. Em outras palavras, estamos falando de uma estratégia a longo prazo para fomentar a mudança pacífica nas sociedades não-democráticas do Oriente Médio mais amplo ao longo das próximas duas décadas, comparável à evolução encorajada na Europa sob domínio soviético por uma mistura de contenção e conciliação. Uma evolução que acabou gerando um Gorbachev.

Esta abordagem representa um desenvolvimento significativo não só na política americana, mas também no próprio pensamento de Condoleezza. Há quatro anos, ela entrou na Casa Branca como uma conselheira de Segurança Nacional numa plataforma intelectual de "realismo", enfatizando o poder militar e a busca determinada dos interesses nacionais. Mas sua recente mescla de idealismo parece plausível não só por conta do que ela diz, mas de quem ela é - uma afro-americana cujos ancestrais escravos, como ela lembra com freqüência, foram tratados, até mesmo pelos fundadores da democracia americana, como mera propriedade, uma fração de um homem. Proclamando este programa grandemente ambicioso de promoção da democracia ao redor do mundo, da Bielo-Rússia e Mianmá à Arábia Saudita e Zimbábue, ela disse em Paris que "na minha experiência, uma negra chamada Rosa Parks um dia simplesmente cansou de ser obrigada a sentar-se na parte de trás do ônibus, e então recusou-se a mudar de lugar. E ela desencadeou uma revolução de liberdade no Sul americano." Não é uma frase que Bush poderia proferir de modo verossímil.

Mas aqui a boa notícia termina e o problema começa. "O presidente Bush", disse Condoleezza em Paris, "continuará nossa conversa quando chegar à Europa em 21 de fevereiro." Mas ele pode convencer os europeus de que isto é realmente uma conversa, e não um ditado? Outro problema para Bush é que Gorbachev era o líder inconteste de um Estado pós-totalitário. Abbas é, em contraste, o líder contestado de um Estado inexistente. Representantes de dois grupos palestinos militantes, Hamas e Jihad Islâmica, disseram não estar submetidos a seu cessar-fogo. Reagan era o principal interlocutor de Gorbachev; os acordos eram feitos diretamente pelos dois. Apesar de toda a influência dos EUA na região, o principal interlocutor de Abbas é Sharon, e o acordo tem de ser feito por eles. E se a negociação israelense-palestina parar, as divergências transatlânticas poderão se aguçar novamente.

A política de Bush para o Irã é outro ponto de potencial conflito com a Europa. Não está claro como os EUA atingirão seus objetivos neste caso. E uma grande disputa transatlântica se anuncia sobre a proposta da UE de suspender seu embargo às exportações de armas para a China.

Assim, se eu fosse um jogador, não apostaria na longa duração desta lua-de-mel transatlântica. Enquanto eu escrevia este artigo, meu tradutor italiano enviou outro e-mail: "Possivelmente, o nome poderia sugerir condoglianze, isto é, condolência (por ocasião de uma morte)..." A morte do Ocidente, talvez? Com essa perspectiva concentrando nossas mentes, nós, europeus, deveríamos agarrar este frágil momento de oportunidade para pôr na mesa nossas próprias propostas de como melhor atingir nossos objetivos comuns. Precisamos fazer isso logo, concretamente e com brio.

Timothy Garton Ash, professor de estudos europeus na Universidade de Oxford, é autor de Free World: America, Europe and the Surprising Future of the West (Mundo Livre: América, Europa e o Surpreendente Futuro do Ocidente)