Título: O Bolsa-Família chega, vira comida, e Araioses continua na mesma miséria
Autor: Eduardo Nunomura
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/02/2005, Nacional, p. A12

Só a distribuição de dinheiro não é suficiente para levar desenvolvimento a populações carentes, mesmo em locais férteis como Araioses

ARAIOSES - Localizada no Delta do Parnaíba - paraíso ecológico e berço de riquezas que, se bem exploradas poderiam virar fonte de renda para milhares de famílias -, a pobre cidade maranhense de Araioses recebe do Bolsa-Família R$ 3,2 milhões para pagar 4.249 benefícios. Oito em cada dez famílias pobres recebem a ajuda governamental. Entre os dez piores municípios do País com menor Índice de Desenvolvimento Humano é onde o programa federal tem maior impacto em relação a outras transferências, como o Fundo de Participação dos Municípios e o Fundef. A injeção de dinheiro extra na cidade, contudo, não tem produzido alternativas de renda à população.

"O dinheiro do Fome Zero faz o nosso rancho: arroz, feijão, óleo, café e açúcar", explica Raimundo Nonato Ramos da Silva, um catador de caranguejos do distrito de Carnaubeiras. Casado com Rosiane Silva e pai de três crianças, ele ganha cerca de R$ 250 por mês com os caranguejos.

Do Bolsa-Família vêm outros R$ 65. Após um ano e seis meses recebendo a ajuda, a família Ramos da Silva progrediu muito pouco. A casa de três cômodos tem chão de barro na cozinha. Só a fachada da frente ganhou reboco. O banheiro fica do lado de fora. Eles não têm geladeira e o fogão é um velho aparelho de duas bocas.

Cerca de 35 mil pessoas moram em Araioses numa área de 1.596 quilômetros quadrados - quase o mesmo tamanho da capital paulista.

A maioria vive longe do centro da cidade, em comunidades pobres e onde não é difícil faltar água e luz. Água encanada é um luxo para 12% da população, assim como a coleta de lixo. A mortalidade infantil é enorme, de 84,5 para cada mil nascidos vivos. A expectativa de vida é inferior a 56 anos. Nem metade das casas possui bens como geladeira e televisão. Só dois em cada cem araiosenses têm telefone. A renda per capita é de R$ 45,30.

Os dados do IBGE materializam uma realidade difícil de ser aceita numa área onde estudos indicam terras de alta fertilidade que se prestam a qualquer cultivo. Planta-se arroz, cana-de-açúcar, mandioca, feijão e melancia. Muitos usam o quintal para ter uma cultura de subsistência. E há gado. Mas a falta de regularização fundiária faz com que uma legião de bóias-frias se locomova em caminhonetes lotadas todos os dias. Vão trabalhar em roças de outros produtores.

O resultado dessa falta de perspectivas diante de um quadro que não deveria ser assim é que araiosenses acabam aceitando trabalhar em condições subumanas. Araioses é um daqueles lugares do País em que empreiteiros vão recrutar mão-de-obra escrava. "Eles aceitam as propostas, desiludidos, porque aqui não vêem seu trabalho virar uma casa nova, uma roça grande", diz o presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais do município, Francisco das Chagas Silva Costa.

CACHAÇA

Em Araioses, cada família recebe em média R$ 62,82 por mês pelo Bolsa-Família - mais que a média nacional, de R$ 51,45. Aí entra o dinheiro do Vale-Gás, Bolsa-Escola e Bolsa-Alimentação. "O que eles recebem é uma bolsa-miséria", reclama o prefeito José Cardoso do Nascimento (PSC), que questiona os valores repassados pelo programa e reclama da "mentalidade do povo e dos comerciantes" em gastar o dinheiro em Parnaíba, cidade vizinha no Piauí. "As pessoas estão comendo mais, só que, às vezes, gastam é com cachaça."

Se esse ciclo de só distribuir dinheiro se perpetuasse por mais um século, é pouco provável que Araioses - e muitas outras cidades contempladas pelo Fome Zero - saísse por conta própria do seu estágio atual de pobreza. O governo sabe disso. A Petrobrás premiou o município maranhense com um projeto para criar alternativas sustentáveis de geração de renda, emprego e comida.

Em setembro, a estatal aprovou um projeto para ser executado em 12 meses que prevê a injeção de R$ 474 mil pelo Programa Fome Zero Petrobrás e outros R$ 1,3 milhão de contrapartida pelas organizações não-governamentais Care e PPSJ. Prevê beneficiar mais de 550 famílias.

Esse dinheiro vai ser utilizado para melhorar a economia do caranguejo, em Carnaubeiras (veja ao lado).

O Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) realizou um recente estudo sobre a economia do caranguejo. Constatou o que na prática todos já sabiam: ninguém fica rico com o crustáceo.

Segundo o órgão, o PIB anual gerado pela atividade é de R$ 393,3 mil e a renda média é de R$ 305 para as famílias de catadores em Carnaubeiras. Mas esse dinheiro não é reinvestido, há perdas na estocagem e o produto já sofre as ameaças da exploração predatória.

APATIA

"O Lula pode passar 30 anos no poder e não vai mudar muita coisa porque os próprios municípios não investem em promoção social", diz o sindicalista Silva Costa. Na opinião dele, as pessoas saem do estado de miséria, mas continuam incapazes de progredir.

Muitos arriscam investir em empréstimos para alavancar suas pequenas propriedades, mas sem fiscalização e apoio local acabam perdendo tudo. Viram inadimplentes. "Há muito dinheiro desperdiçado, como o programa de agricultura familiar, que vira só um fundo perdido." Responsável por um orçamento de R$ 16 milhões, o prefeito atribuiu à falta de investimentos estadual e federal o estado de apatia que visivelmente toma conta da população. Prefeito por outros dois mandatos antes de 1992, ele espera das instâncias superiores o passo inicial para melhorar a vida dos araiosenses. De sua parte afirma que vai investir em agricultura, educação, saúde, transporte e segurança.

A vida resignada dos araiosenses contrasta com o lugar que foi palco de uma das mais importantes revoltas populares do País no século 19, a Balaiada. Negros e índios, liderados por Manuel Francisco dos Anjos Ferreira, o Balaio, chegaram a organizar um governo independente, entre 1838 e 1841, quando a rebelião foi sufocada. Hoje, a memória dos balaios é uma sombra esquecida nesse município do Maranhão.