Título: A cúpula de Madri e o terrorismo
Autor: Celso Lafer
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/03/2005, Espaço Aberto, p. A2

Na semana passada, realizou-se em Madri uma reunião de cúpula sobre Democracia, Terrorismo e Segurança, no contexto da passagem de um ano do atentado terrorista que vitimou aquela cidade. Foi iniciativa do Clube de Madri, organização presidida por Fernando Henrique Cardoso, que reúne ex-chefes de Estado e de governo de países democráticos. Estes, em função de sua experiência, sabem que uma sociedade democrática, dentro de certos limites, suporta a violência criminal, mas não pode, como aponta Bobbio, suportar a violência política. O terror é um estado de medo exacerbado e o terrorismo pode ser visto como o conjunto de ações voltadas para provocá-lo, com o objetivo de mudar condutas. Estas ações não são um fenômeno novo, mas têm, no mundo contemporâneo, uma dimensão transnacional generalizada, responsável pela transformação do terrorismo num sério problema de segurança coletiva. Para isso contribui a capacidade técnica de atuação em rede de grupos terroristas e a sua porosa proximidade com as redes do crime organizado, do comércio ilícito das drogas, das armas e da lavagem de dinheiro. A isso se somam as tensões difusas derivadas do extremismo e da intolerância, e a instantaneidade, num mundo globalizado, da comunicação. Esta última favorece o dito chinês: "É melhor matar um e ser visto por mil que matar mil e ser visto por um."

Buscar a mudança pela violência terrorista é uma negação da democracia. Por isso a Constituição de 1988 faz do repúdio ao terrorismo um dos princípios que regem as relações internacionais do nosso país (artigo 4, VIII) e o terrorismo no Brasil é crime hediondo, inafiançável, insuscetível de graça e anistia (artigo 5.º, XLIII, e Lei 8.072/90). O terrorismo contesta igualmente os valores da Carta da ONU: a solução pacífica das controvérsias, o respeito recíproco por pessoas de diferentes religiões e culturas, a proteção da população civil, a observância dos direitos humanos.

A violência destrói o poder, não o cria, como ensina Hannah Arendt. O "poder de negação" da violência se viu multiplicado pelos instrumentos que a tecnologia contemporânea oferece. A forma extrema de violência é o de um contra todos e a resposta à violência passa pela capacidade de gerar poder pela ação conjunta de muitos.

A cúpula de Madri representou inovadora etapa do processo de criação de poder para lidar com o desafio da violência terrorista. Com efeito, esta geração requer ir além da ação dos governos. Exige a participação e a força moral da sociedade civil. Este foi um dos pontos sublinhado na cúpula, que contou com a presença de governantes, autoridades de organizações internacionais, ex-mandatários, ONGs, intelectuais e peritos com conhecimentos do que incide no fenômeno terrorista.

Em Madri se explicitou por que a luta contra o terrorismo só pode ser eficaz por meio de uma ação conjunta, na moldura da democracia e dos direitos humanos. Daí o alcance e o sentido de direção do discurso de Fernando Henrique na cúpula, criticando ações unilaterais, ao arrepio da ONU, das normas do Direito Internacional e das soluções multilaterais.

Madri foi o foro que Kofi Annan escolheu para enunciar a estratégia da ONU para o combate ao terrorismo e mobilizar o apoio dos Estados e da sociedade civil na lida com os cinco "dês" da sua proposta: dissuadir os grupos descontentes de escolher o terrorismo como tática para alcançar objetivos, dificultar aos terroristas o acesso aos meios para levar a cabo os seus atentados, fazer os Estados desistirem de prestar apoio aos terroristas, desenvolver a capacidade dos Estados de prevenir o terrorismo, defender os direitos humanos na luta contra o terrorismo.

Em matéria de dissuasão, Kofi Annan registrou a existência das normas jurídicas que limitam o uso da força pelos Estados em confrontos bélicos - em especial em relação à população civil - e apontou a necessidade de uma convenção internacional que qualifique o terrorismo como inaceitável em toda circunstância e em toda cultura. Sublinhou, assim, a falta de abrangência normativa precisa sobre o uso da força por atores não-governamentais, que contrasta com a tipificação dos crimes de guerra e dos crimes contra a humanidade, que alcança agentes governamentais.

Esta lacuna provém da atenção dada às intenções de quem recorre ao terrorismo (resistência à ocupação, guerrilha) em detrimento do sofrimento das suas vítimas, que padecem o mal de uma pena sem culpa. Isto ocorre apesar da existência de 12 convenções internacionais sobre o terrorismo que tratam, inter alia, do apoderamento de aviões e navios, de atentados contra autoridades governamentais, do seqüestro de pessoas, do roubo de material nuclear, da supressão de bombardeios terroristas.

A proposta de Kofi Annan, com base na convenção de 1999 para a supressão de financiamento ao terrorismo, é a de que constitui terrorismo todo ato que obedeça à intenção de causar a morte ou graves danos corporais a civis não-combatentes com o objetivo de intimidar uma população ou obrigar um governo ou uma organização internacional a realizar ou abster-se de realizar um ato. É inequívoca a força moral e política desta definição que juridicamente deslegitima a prática terrorista. Por isso, foi respaldada nas conclusões da cúpula de Madri e deve ser seguida pela diplomacia brasileira, que nela encontra um caminho preciso para cumprir, como deve, o princípio constitucional do repúdio ao terrorismo.

Celso Lafer, professor titular

da Faculdade de Direito da USP, foi ministro das Relações Exteriores no governo