Título: Saia-justa: Cabo Anselmo pede reparação
Autor: Vasconcelo Quadros
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/04/2005, Nacional, p. A12

Os 40 anos de vida clandestina do marinheiro José Anselmo dos Santos, o ex-ativista que traiu a esquerda armada e ficou conhecido como Cabo Anselmo, já não são mais um segredo para o governo. Num texto de 1.140 linhas com a chancela de "Reservado" e o título Em Defesa Própria, enviado ontem ao presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, Marcelo Lavenére, Cabo Anselmo abre o jogo. Faz um relato minucioso sobre sua trajetória, de 1964 até hoje, para provar que ele é o mesmo personagem que reivindica indenização financeira da União como anistiado, embora nunca tenha estado frente a frente com nenhum dos 17 conselheiros que irão julgá-lo. O memorial do Cabo Anselmo, ao qual o Estado teve acesso com exclusividade, é também uma saia justa a um governo formado em boa parte por ex-integrantes de organizações guerrilheiras por ele delatadas. Dividida entre o que diz a lei - que não faz distinção entre cassados pela ditadura - e a repercussão de uma eventual concessão de indenização, a comissão terá de resolver em breve o que é considerado o mais emblemático caso dos cerca de 60 mil pedidos de pretendente à anistia. Será preciso resolver também outro impasse: como tratar um personagem que, como um fantasma, um morto-vivo da política, vaga na clandestinidade? "Na hora eu decido o que fazer", disse Cabo Anselmo, por telefone, ao se referir à necessidade de aparecer publicamente na hipótese de ganhar a indenização. No texto, ele se queixa dos julgamentos que considera precipitados e rememora a trajetória que o transformou de esperança da luta armada a um dos homens mais odiados pela esquerda.

Também lembra a prisão, o exílio em Cuba como quadro militar enviado pelo ex-governador Leonel Brizola, o retorno ao Brasil, a nova prisão e, finalmente, sua conversão para a condição de agente duplo. Ele delataria companheiros - presos e assassinados pela ditadura - e forneceria ao delegado Sérgio Paranhos Fleury, maior símbolo da tortura no Brasil, a espinha dorsal da guerrilha urbana.

Aos 63 anos, o Anselmo que se dirige à anistia é um homem em conflito com o estigma de traidor. "Deus os livre de experimentar condições similares", diz. Admite que traiu em duas situações: a primeira quando abandonou a Marinha, ignorando o juramento à bandeira, e a segunda ao decidir colaborar com a polícia "em circunstâncias adversas e risco pessoal extremo para continuar vivendo".

Ele procura justificar a decisão explicando que a intenção era colaborar com a pacificação do País.

Ele encerra o texto com um apelo aos conselheiros. "Espero ajudar a esclarecer um assunto tão conflitivo. As páginas acima contêm a síntese da minha vida, pensamento e ação. Que possam ajudar a refletir sem fantasias alucinadas veiculadas a meu respeito."

O relato complementa um depoimento que Cabo Anselmo deu, no final do ano passado, à própria Comissão de Anistia, por telefone, no sistema viva-voz.