Título: Repensar o mínimo
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Fonte: O Estado de São Paulo, 02/05/2005, Notas e Informações, p. A3

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva prometeu na campanha eleitoral duplicar o valor real do salário mínimo em quatro anos. Ele já deve saber que isso não ocorrerá e não há por que criticá-lo por não cumprir a promessa. Teria sido muito pior se ele nada tivesse aprendido no exercício da Presidência. Mas é necessário e possível aumentar o salário básico, para elevar o padrão de consumo de milhões de brasileiros e ao mesmo tempo ampliar o mercado interno. Falta descobrir como fazê-lo. Para isso, uma comissão especial foi instituída por decreto assinado em 20 de abril e publicado no dia 22. Esse grupo terá de reunir competência, realismo e seriedade e seus integrantes precisarão estar dispostos a enfrentar críticas pesadas e possivelmente injustas. Está prevista a formação de um comitê quadripartite, com representantes do poder público, de entidades de trabalhadores, de associações patronais e de organizações de aposentados. Será integrado por 22 membros, no mínimo, e seu presidente será vinculado ao Ministério do Trabalho.

As condições mínimas de realismo estão indicadas no artigo 1.º do decreto: a comissão deverá levar em conta, ao estudar o aumento do salário mínimo, os impactos da mudança "no mercado de trabalho, na Previdência Social e nas políticas de assistência e desenvolvimento social no âmbito do governo federal e dos demais entes federativos".

Se a fórmula encontrada atender a esse conjunto de restrições, o Brasil poderá livrar-se, enfim, de um debate que se repete a cada ano sem produzir soluções satisfatórias. Estão disponíveis para discussão, desde já, pelo menos algumas idéias básicas. Há quem proponha desvincular o salário mínimo dos trabalhadores na ativa do valor básico das aposentadorias. É uma proposta sujeita a muita controvérsia, mas a discussão desse ponto será inevitável.

O mesmo artigo estipula, também, que a comissão deverá levar em conta o impacto do salário mínimo no mercado de trabalho. Esse detalhe tem sido menos discutido que o efeito do mínimo nas contas da Previdência, mas é oportuno lembrá-lo. Regionalizar o mínimo, com base nas diferenças de custo de vida, pode ser uma solução realista, segundo alguns estudiosos. Pode-se argumentar que essa medida estimularia a migração entre regiões, mas essa tese é discutível. O efeito será bem diferente se a regionalização, combinada com uma eficiente política de investimentos, favorecer uma oferta maior de empregos e a formalização dos contratos de trabalho.

Um comitê composto de pessoas competentes e dispostas a trabalhar com seriedade poderá realizar um trabalho criativo, se abandonar preconceitos e levar em conta a experiência acumulada pelo menos desde o início dos anos 90.

Essa experiência proporciona pelo menos alguns ensinamentos seguros e importantes. Quatro pontos merecem consideração preliminar: 1) qualquer política de valorização salarial é inútil quando não se controla a inflação; 2) é preciso pensar não só na elevação do salário mínimo, mas também na expansão da massa de rendimentos - que depende da criação de empregos e não da aprovação de leis ou decretos; 3) o maior impedimento à elevação do piso salarial não está no setor privado, mas no setor público, especialmente na Previdência; 4) não adianta fixar objetivos em moeda estrangeira, especialmente num regime de câmbio flutuante.

O salário mínimo de R$ 300 que entrou em vigor ontem equivale, pelo câmbio do início da semana passada, a cerca de US$ 118. Há um ano, o mesmo valor em moeda nacional corresponderia a cerca de US$ 103. Pelo câmbio, o piso salarial teria subido 14,5%. Mas qual teria sido, de fato, a evolução do poder de compra do trabalhador?

Teria caído. Os R$ 300 de um ano atrás teriam poder de compra maior que o de hoje, no mercado interno, já que ocorreu, nos últimos 12 meses, uma inflação de aproximadamente 7,5%. Este é um exemplo de como se pode gastar energia com discussões inúteis. Além do mais, é possível que um câmbio menos valorizado tivesse estimulado mais exportações e mais investimentos, com maior geração de empregos. Mas qual teria sido a inflação? A combinação dessas questões mostra que um debate realista vai muito além da retórica habitual. Esse realismo é o que se deve cobrar do novo comitê.