Título: Futebol e racismo
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/04/2005, Editoriais, p. A3

A um companheiro de time que se queixou com ele das ofensas recebidas de um adversário no decorrer de um jogo, Leônidas da Silva, um dos maiores craques brasileiros de todos os tempos, deu uma resposta tão perfeita como os gols de bicicleta que o celebrizaram desde a Copa do Mundo de 1938, na França: "A mãe que você leva para o campo não tem nada que ver com a mãe que você tem em casa." Com isso, o calejado "Diamante Negro" - o apelido vem a calhar para o que se segue - aconselhava o queixoso a ficar frio e não chutar ou estapear o ofensor, correndo o risco de ser expulso, que era, afinal, o que o outro queria que fizesse.

Foi rigorosamente o que aconteceu na partida entre o São Paulo e o Quilmes, da Argentina, com todas as suas equivocadas conseqüências. Ao dirigir ao atacante Grafite, acrescido do termo "negro", o mais comum dos expletivos que se ouvem durante um jogo - dentro e fora do gramado -, o zagueiro quilmenho Desábato desejava que o são-paulino revidasse. Grafite bateu com a palma da mão na sua cabeça, Desábato desabou como se tivesse levado um tiro, o juiz deu cartão vermelho para o agressor (e para outro argentino com quem se envolvera logo antes em um lance faltoso). O provocador continuou em campo.

A caminho do vestiário, visivelmente abatido, Grafite se recusou a confirmar se Desábato teria dito "alguma coisa de cunho racista", nas palavras do repórter que o abordou. "Não vou nem comentar para não dar ênfase", desvencilhou-se o jogador. A essa altura ele não tinha como saber que já se dava ao episódio, afinal corriqueiro, toda a ênfase possível. O narrador da Rede Globo exaltou-se, fez praça do seu anti-racismo (a ponto de mostrar a sua pulseira de faixas preta e branca entrelaçadas), chamou mais de uma vez as imagens do incidente e usou adjetivos pesados ao se referir a Desábato. Começava-se a armar o espetáculo.

O secretário de Segurança, Saulo de Castro Abreu Filho, que acompanhava o jogo pela TV, acionou a polícia. O delegado de plantão no estádio, depois de conversar com um Grafite já então disposto a levar o caso adiante, deu voz de prisão ao argentino assim que a partida se encerrou. Foi a senha para o costumeiro show de estridência na mídia eletrônica, que mal deixou que se soubesse que, depois de depor, Desábato foi indiciado por injúria qualificada e não por crime racial, este inafiançável. Ainda assim, uma procuradora do Ministério Público estadual deu parecer contrário à soltura do atleta, sob fiança.

Foi um caso típico de "melée", como diziam os locutores esportivos para designar confusão. É verdade que a Argentina não é nenhum paradigma de ausência de preconceito racial. Que o digam a sua ampla comunidade judaica, a proteção oficial aos nazistas fugidos depois da guerra - e o termo "macaquitos", tradicionalmente aplicado aos brasileiros. É verdade também que, no jogo anterior, em Buenos Aires, jogadores e torcedores do Quilmes usaram ditos racistas contra Grafite - o apelido, aliás, não aborrece o jogador Edinaldo Batista Libânio. Mas, como de hábito, os primeiros queriam que o adversário perdesse a cabeça.

Isso é muito diferente do ódio racial que passou a freqüentar os estádios europeus. Na Espanha e Itália, por exemplo, é alarmante o número daqueles que ocupam as arquibancadas não para torcer por um time, mas para agredir os jogadores de origem africana com gestos, coros e objetos arremessados. Os Ronaldos brasileiros estão entre os alvos preferidos da horda. Some-se a essas peçonhentas manifestações a sanha de parte dos torcedores quando os seus times enfrentam clubes "judaicos", como o Roma, o Tottenham Hotspur, de Londres, e o MTK, de Budapeste. Na xenofóbica Europa de hoje, o futebol é a arena pública do racismo.

Registre-se, por fim, que a legislação penal anti-racista brasileira, de 2003, representa um avanço. Embora o Brasil contemporâneo, felizmente, não tenha experiência dos horrores que podem advir do preconceito racial, étnico ou religioso, a dissuasão legal é sempre o melhor remédio. A questão, como em tantas outras esferas da vida coletiva, é saber quando a repressão se justifica e quando ela é uma resposta desmedida - suscitada, no caso, pela histeria diante de um episódio trivial no futebol. Mestre Leônidas da Silva decerto reprovaria o que se fez com Leandro Desábato, tratado pelas autoridades como autor de crime hediondo preso em flagrante.