Título: Luta contra o nepotismo
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/04/2005, Editoriais, p. A3

Diante da indignação popular provocada pela contratação desenfreada de parentes de deputados e senadores para cargos comissionados - prática também comum no Executivo e em certos setores do Judiciário - e pelos argumentos acintosos e até debochados utilizados pelo novo presidente da Câmara, Severino Cavalcanti (PP-PE), para justificar nomeações de filhos e sobrinhos, a Comissão de Constituição e Justiça dessa Casa legislativa finalmente aprovou seis propostas de emenda constitucional que proíbem o nepotismo nos três Poderes. Algumas dessas propostas estavam engavetadas desde 1996. Apesar de terem sido aprovadas por unanimidade, após debates marcados por ironias, provocações e até a denúncia de um deputado de que "há amantes de gente do Executivo trabalhando aqui", essas propostas ainda tardarão a produzir resultados concretos. Como todas tratam do mesmo tema, mas com redações distintas entre si, primeiramente as seis propostas terão de ser sistematizadas por uma comissão especial que ainda precisa ser instalada. O deputado Severino Cavalcanti, contrariando seus próprios interesses, promete fazê-lo no menor prazo possível. A ver.

Além disso, pelo regimento da Câmara essa comissão poderá realizar até 40 sessões, para concluir seu trabalho. Só após essa etapa é que o projeto estará em condições de ser levado ao plenário. E, para ser aprovado, terá de ser submetido a duas votações e receber, em cada uma delas, o voto favorável de três quintos dos deputados. Em seguida, o texto será enviado ao Senado, onde necessitará ser aprovado em dois turnos, sem qualquer modificação, pelo mesmo quórum. Se for modificado, o projeto voltará à Câmara.

Como se vê, a tramitação da proposta antinepotismo, desengavetada às pressas em face da indignação popular, será longa. E, se não for aprovada ainda este ano, poderá ficar para as calendas. Como 2006 é um ano eleitoral, período em que o Congresso tradicionalmente funciona em regime de meio expediente, pois seus integrantes passam a maior parte do tempo em suas bases, para tentar assegurar a reeleição, tudo indica que as votações decisivas sejam deixadas para a próxima legislatura.

Mesmo que as lideranças responsáveis do Congresso tentem acelerar a tramitação desse projeto e consigam aprová-lo em tempo recorde, há ainda outras complicações que podem comprometer sua eficácia. O ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, mostra o que vem pela frente quando afirma que "há muita calúnia nas acusações" de que esposas de parlamentares e ministros são nomeadas para cargos em comissão, quando elas são funcionárias públicas por concurso e têm o direito legal de acompanhar seus maridos, que fixam residência em Brasília. A lei, de fato, garante a transferência do cônjuge, mas para cargo equivalente ao que ocupava em sua repartição de origem, e não - como parece entender o chefe da Casa Civil - para cargo em comissão, que rende gratificação extra.

Outra complicação diz respeito ao alcance das medidas moralizadoras. Filhos, noras, genros e sobrinhos de parlamentares que já estiverem contratados, quando esse projeto for convertido em lei, terão de ser sumariamente demitidos? Ou, por terem sido nomeados antes da entrada em vigor dessas medidas, ficarão imunes aos seus efeitos?

Embora a primeira hipótese seja a prevalecente na doutrina jurídica, nada impedirá que os atingidos possam, em nome do "direito adquirido", bater nas portas da Justiça e obter liminares para permanecer no cargo. E, como o julgamento de mérito costuma demorar, o fim em caráter definitivo das contratações, sem concurso público, de parentes até o segundo grau de autoridades nos três Poderes e nos três níveis de governo (União, Estados e municípios), pode levar anos.

Evidentemente, essas dificuldades não devem esmorecer os parlamentares sérios e empenhados no resgate da autoridade moral do Legislativo. Mas é claro que, diante da indignação popular com o nepotismo, muitos parlamentares estão agindo de modo hipócrita, aplaudindo essas medidas só para cortejar a opinião pública, e na esperança de que o tema, mais dia menos dia, seja deslocado das manchetes para as páginas interiores dos jornais, até desaparecer. Na realidade, moralizar a vida política é uma tarefa que não se esgota com a simples mobilização pela aprovação de uma proposta de emenda constitucional.