Título: Deslavada hipocrisia
Autor: Jarbas Passarinho
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/04/2005, Espaço Aberto, p. A2

Nada mais injusto que aceitar versões de fatos históricos recentes ainda imbuídas de paixão. Respeito os que dizem preferir a loucura da paixão ao juízo da indiferença. A paixão não é o melhor ingrediente para a produção da verdade, do mesmo modo que a indiferença trai a covardia dos escapistas. A volumosa produção de crônicas, livros e filmes de louvor aos guerrilheiros comunistas que desencadearam a luta armada de 1967 a 1975, em que foram vencidos, é um esforço a deformar a História. Os vencidos são a imagem do bem e os militares, a do mal, nessa versão maniqueísta. Sábio provérbio oriental diz: "Todo fato tem três versões: a sua, a minha e a verdadeira." A falta do cumprimento dessa cautelar recomendação, associada à "loucura da paixão", se torna, por vezes, a apologia da mentira, na medida em que esconde o verdadeiro objetivo dos guerrilheiros, que se poderia até respeitar como sincera opção política, se livros e filmes contassem toda a verdade. Enaltecem os comunistas e a luta armada que desencadearam, fazendo crer às gerações atuais que foram jovens idealistas lutando pela liberdade contra uma ditadura cruel. Entretanto, foram treinados em países totalitários, castradores de todas as liberdades fundamentais.

O mundo pós-2.ª Guerra Mundial dividia-se em dois hemisférios ideológicos, os Estados Unidos da América e a União Soviética, empenhados na guerra fria. O comunismo se expandira, abandonada a fase do "socialismo em um só país" para a da revolução permanente. A guerra revolucionária fizera crescer o comunismo, da China à África, e fincara as bandeiras vermelhas no Caribe, em Cuba, ponta-de-lança para a revolução nas Américas, Central e do Sul.

Ainda em fevereiro de 1961, no governo Jânio Quadros, além do PCB, clandestino, já havia organizações comunistas partidárias da luta armada, simpáticas à China de Mao Tsé-tung. Em 1962, sendo presidente João Goulart, o PC do B rompera com Prestes porque optara pela luta armada. Prova de que os comunistas não respeitavam os regimes democráticos, já que estavam lutando para a conquista universal do poder. Falso, pois, é o argumento de que no Brasil lutavam pela democracia. Entre 1963 e 1964, a revolução, tudo indicava, dominaria o Brasil. Atesta-o o criterioso historiador comunista Jacob Gorender no livro Combate nas Trevas. No capítulo Pré-revolução e golpe preventivo, descreve a conspiração da esquerda, no governo Jango, envolvendo "os subalternos nacionalistas da Forças Armadas, propensos, por seu viés profissional, à idéia da solução pelas armas", tentada por sargentos armados em Brasília, em 1963, e em 1964 no Rio de Janeiro, pelos marinheiros amotinados. É essa pré-revolução que o "golpe preventivo" aborta em 1964. A esquerda revolucionária, rearticulada, inicia a luta armada em 1967, adestrada e financiada por Fidel Castro. Foi totalmente vencida.

Filmes têm retratado os guerrilheiros comunistas como heróis. O mais recente, noticiou o Estado (jornal insuspeito de conivência com a ideologia marxista-leninista), é o filme Cabra-Cega. Na reportagem lê-se: "Dezoito senhores e senhoras (convidados pelo Estado), que foram perseguidos, torturados e deportados durante o regime militar, assistiram com emoção a uma sessão especial do filme." A platéia foi levada às lágrimas ao ver as vítimas da repressão, um "momento delicado da recente história brasileira, a resistência à ditadura militar, que ainda não foi devidamente analisado e contado". Ao ler os nomes que formaram a "platéia emocionada", detive-me num: Pedro Lobo de Oliveira, personagem do livro A Esquerda Armada no Brasil, 1967/1971, premiado em Cuba, onde estava homiziado. Conta, como proeza, que participou do assassinato do capitão norte-americano Charles Chandler, desarmado e à vista da esposa e do filho menor. "Uma fera nociva", diz, "que devia ser eliminado da sociedade", porque teria lutado no Vietnã e estivera na Bolívia quando morrera emboscado Che Guevara. O valente revolucionário deixou ao lado do cadáver do militar um folheto: "O dever de todo revolucionário é fazer a revolução. Criar dois, três, muitos Vietnames", como recomendara Che Guevara. Lembrei-me do seu relato que eu lera no livro apologético que traz também, como parte da luta contra a ditadura, a ação terrorista com carro-bomba que explodiu o corpo do soldado de sentinela ao quartel do II Exército, de São Paulo. Isso é quase certo não constar do filme, como não constou no Que é Isso Companheiro? o trucidamento a coronhadas do tenente PM paulista que era refém voluntário de Lamarca no Vale do Ribeira.

Desconheço os demais assistentes "emocionados com as cenas de tortura", uma prática isolada aqui, na luta contra a insurreição, mas não uma política de governo cruelmente executada nos atrozes países comunistas. Para Pedro Lobo de Oliveira, "matar pelo bem da causa" é nobre. Juntar-se depois a uma platéia derramada em lágrimas decerto foi uma deslavada hipocrisia.

Assim se faz a História, já o disse Voltaire, faz 200 anos.

Jarbas Passarinho,

ex-presidente da Fundação

Milton Campos, foi

senador pelo Estado do Pará

e ministro de Estado