Título: A maior festa do cinema
Autor: D1
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/05/2005, Caderno2, p. C8

Luiz Carlos Merten Vai começar o maior show da Terra. Como? Outra edição do carnaval carioca, em maio? Não. O maior evento planetário, pelo menos do ponto de vista da mídia, é o festival de cinema que se realiza na pérola da Côte d'Azur, Cannes. Há mais jornalistas credenciados para cobrir o Festival de Cannes do que para o enterro e eleição do papa, a Olimpíada ou a Copa do Mundo. São eles que escrevem milhões de linhas de reportagens e divulgam, através do mundo, as imagens e sons que fazem de Cannes o maior evento planetário. E todo o circo de Cannes converge para o ritual da montée des marches, quando o mais importante dos festivais estende o tapete para recepcionar os diretores que competem pela Palma de Ouro. O alemão Dominik Moll, que abre a mostra competitiva desta 58.ª edição com Leamming, um drama sobre dois casais. Moll não é exatamente um neófito no festival, pois já concorreu em 2000, com Harry Chegou para Ajudar. O Brasil não tem filmes na disputa pela Palma de Ouro, mas, em compensação, tem dois (o que é raro) na mostra Un Certain Regard, a segunda mais importante de Cannes e ambos concorrem à prestigiada Caméra d'Or, a vitrine para diretores estreantes. Os dois filmes são Cinema, Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes, e Cidade Baixa, de Sérgio Machado. O júri da Palma de Ouro será presidido por Emir Kusturica; o da Caméra d'Or, por Abbas Kiarostami.

Os críticos têm a ilusão de Cannes ser um evento artístico. O júri, em geral, contribui, premiando filmes (e autores) que fazem um cinema alternativo em relação à dominação de Hollywood. O cinema periférico vai a Cannes em busca de reconhecimento, de uma vitrine. Até o cinemão beneficia-se desta vitrine e o grande evento midiático de Cannes-2005 será a estréia mundial de Star Wars 3 - A Vingança dos Fartura, exibido na Mostra BR de Cinema, em São Paulo. Sam Shepard abandona o set daquele filme e parte numa viagem de autoconhecimento. Parece pouco, mas convém não subestimar a capacidade de Wenders, mesmo que o chamado 'Sr. Cinema' dos anos 1980 não esteja numa grande fase.

Os irmãos Dardenne, vencedores em 1999 com Rosetta, concorrem com L'Elefant. E Gus Van Sant, que arrebatou a Palma de 2003 com Elefante, volta a Cannes com Last Days. Esses são os habitués de Cannes que já ganharam o principal prêmio do festival. A seleção traz um monte de outros que há anos brigam pela Palma - Atom Egoyan, David Cronenberg, Amos Gitai, Michael Haneke, Hou Hsiao-Hsien. Egoyan concorre com Where the Truth Lies, sobre jornalista perturbado pela descoberta de um segredo que afeta as vidas de vários figurões do show business. Esse lado oculto das pessoas e da sociedade já forneceu o tema de um dos maiores filmes do diretor canadense, de origem armênia, nascido no Egito - O Doce Amanhã, que concorreu em Cannes, é bom lembrar. Gitai está na disputa pela Palma com Free Zone, sobre duas mulheres forçadas a compartilhar uma viagem de carro. Gus Van Sant conta, em Last Days, a vida autodestrutiva de um roqueiro que parece inspirado em Kurt Cobain.

Cronenberg, que concorreu pela última vez com Spider, parece voltar a alguns temas daquele filme com A History of Violence, no qual um pai de família comete um assassinato na própria casa, durante o jantar. Hou Hsiao-Hsien mergulha, em Three Times, no universo do cinema, reinventando temas de Taiwan, seu país de origem, mas o espectador brasileiro, quando (ou se...) o filme estrear por aqui, terá dificuldade para identificá-los, pois o cineasta raramente dá as caras no Brasil, embora seja figura carimbada na Croisette. Os Dardennes, depois de O Filho, voltam a Cannes com L'Enfant, em que o tema, mais uma vez, é o enfoque político da excluidora sociedade belga. Jarmusch parece fornecer outro belo papel a Bill Murray, após Encontros e Desencontros (de Sofia Coppola). Em Broken Flowers, o ator recebe uma carta anônima que avisa possuir um filho à sua procura. Mais anonimato - o austríaco Haneke filma em francês, em Caché, a história de um apresentador de TV que também recebe, sem poder identificar a origem, vídeos com imagens privadas dele e de sua família.

Os novos talentos que chegam a Cannes na disputa da Palma não são tão novos assim. The Three Burials of Melquiades Estrada assinala a estréia do ator Tommy Lee Jones na direção; Sin City - A Cidade do Pecado, que adapta os quadrinhos de Frank Miller, é assinado por Robert Rodriguez, que há anos não faz nada decente (se é que algum dia fez); Marco Tulio Giordana, do deslumbrante A Melhor Juventude, concorre com Quando Sei Nato Non puoi Più Nascordenti. Dois asiáticos completam a lista: Masahiro Kobayaski, com Bashing; e Wang Xiaoshuai, de Shanghai Dreams. Cannes aboliu, este ano, os documentários e as animações. Após a polêmica vitória de Fahrenheit 11 de Setembro, de Michael Moore, em 2004, o festival colocou os documentários de quarentena, com as animações. O diretor da comissão de seleção de Cannes, Thierry Freémaux, jura que não é nada disso. Diz que não encontrou filmes desses gêneros com qualidade para integrar a mostra. Como conseqüência, um dos raríssimos documentários este ano será o brasileiro Pelé Eterno, de Anibal Massaini, exibido numa sessão noturna, na praia, em homenagem ao Rei. Frémaux também explica que a fidelidade de Cannes a tantos cineastas que vão e vêm na Croisette tem apenas um motivo - "Eles nos seduzem por seus méritos e pelo que têm a dizer sobre a produção cinematográfica atual."