Título: 'K' e Lula: do namoro aos atritos em série
Autor: Ariel Palácios
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/05/2005, Internacional, p. A14

BUENOS AIRES - A relação da Argentina com o Brasil, ao longo destes dois anos de governo do presidente Néstor Kirchner, teve todas as características de um romance esquizofrênico, oscilando de declarações de amor a brigas de pratos quebrados. Os flertes foram intensos e o namoro começou tórrido. Mas, poucos meses depois de iniciada, rompeu-se algo nesta relação - que perdura entre afagos (cada vez mais mornos) e tapas. O vínculo começou no início de 2003, quando Kirchner ainda era candidato à presidência. Eduardo Duhalde, na época presidente e padrinho político de Kirchner, pediu ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva que recebesse seu "delfim", que precisava de uma foto a seu lado para construir uma imagem de estadista internacional. Lula, que na época tinha uma imagem positiva maior do que os próprios políticos argentinos, o recebeu em abril.

Um mês depois, Kirchner era empossado como presidente. Lula veio para sua posse. Nas fotos, sorrisos e abraços. Os analistas políticos afirmavam que havia nascido uma nova "dupla dinâmica". Mas o idílio só durou até agosto.

Foi exatamente em agosto que Kirchner manteve duras - e decisivas - negociações com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Ele recebeu o apoio telefônico do chileno Ricardo Lagos e do mexicano Vicente Fox. Mas, de Lula, não chegou sequer um e-mail. Kirchner, homem passional e rancoroso, melindrou-se com a falta de apoio explícito.

Em outubro, Lula veio à Argentina para breve visita. Após a insistência de Kirchner, concordou em viajar até os confins da Patagônia, na Província de Santa Cruz, para fazer uma foto com o líder argentino na frente da geleira Perito Moreno.

Tudo indicava que a relação entrava novamente nos trilhos. Mas, nos meses seguintes, o destino foi outro. Kirchner, por meio de seus assessores, começou a atender os pedidos protecionistas - contra a entrada de produtos Made in Brazil - feitos por diversos setores empresariais. Esses pedidos intensificaram-se a partir de julho de 2004, quando Kirchner anunciou medidas contra a entrada de eletrodomésticos brasileiros.

De lá para cá, Kirchner exibiu sua indisposição com Lula na reunião de países do Grupo do Rio e na cúpula de presidentes sul-americanos na cidade peruana de Cuzco. Ambas reuniões eram prioridades para Lula. Mas Kirchner, seu sócio estratégico, preferiu não comparecer. Nessa mesma época, Kirchner ficou mais duro com o Brasil na área comercial, especialmente a partir de setembro, quando pediu a criação de um sistema para diminuir a distância entre as economias dos dois países. No último mês, o presidente engajou-se pessoalmente nos protestos de fabricantes de calçados argentinos contra a importação proveniente do Brasil.

Desde o início deste ano, além dos conflitos comerciais, Kirchner também começou a incomodar-se com o protagonismo de Lula na região. A gota d'água foi a ativa participação brasileira no desenlace da recente crise política do Equador. Poucos dias depois, Kirchner teve de engolir em seco quando viu que a Secretária de Estado Condoleezza Rice visitava Brasil, Chile e Colômbia, mas excluía a Argentina do roteiro.

De quebra, o governo Lula intensificou sua campanha para conseguir uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU. Kirchner opõe-se categoricamente à aspiração. Seu vice-chanceler, Jorge Taiana, disse que isso provocaria desequilíbrios e instabilidades na região. Outro fator que causa urticária em Kirchner é o avanço das empresas brasileiras no território argentino, controlando grandes parcelas dos mercados de combustíveis, cerveja, cimento e distribuição de energia elétrica. Assessores dos dois governos explicam esta turbulenta relação com um clichê: "todo o casal apaixonado tem brigas... se não houvesse paixão, não existiriam discussões."

Maio de 2003 - Lula recebe o então candidato Kirchner em Brasília, a pedido do presidente Duhalde, para ajudá-lo a construir uma imagem de estadista internacional. Lula tinha na Argentina uma imagem melhor que a dos políticos de lá.

Agosto de 2003 - Kirchner abraça Lula durante posse do presidente paraguaio, Nicanor Duarte. Para analistas, havia nascido uma 'dupla dinâmica', mas idílio acabou nesse mês após Kirchner não receber apoio de Lula durante negociações com FMI.

Maio de 2005 - Lula e Kirchner durante abertura da Cúpula América do Sul-Países Arábes em Brasília. Líder argentino manifesta sua oposição às pretensões do Brasil no Conselho de Segurança da ONU. E vai embora antes do final do encontro.