Título: 'Desmatamento não é só caso de polícia'
Autor: Herton Escobar
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/05/2005, Vida&, p. A19

O problema do desmatamento na Amazônia não é só um "caso de polícia". Nem se trata de "um fato isolado, produzido por objetos voadores não identificados". Fazer uma análise simplista do problema, segundo o secretário de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente, João Paulo Capobianco, "é a pior coisa para a Amazônia". Ao mesmo tempo em que reconhece a gravidade da devastação - "Quero mais é que joguem os números na nossa cara mesmo" -, ele cobra uma análise mais construtiva dos índices de desmatamento divulgados esta semana. O resultado geral é que 26.130 quilômetros quadrados de floresta desapareceram do mapa entre agosto de 2003 e agosto de 2004 - aumento de 6% em relação ao período anterior. Uma área quase do tamanho de Alagoas. Apesar disso, há sinais positivos, diz Capobianco, um ambientalista de carreira, que militou no Instituto Socioambiental e na SOS Mata Atlântica antes de entrar para o governo. Pela primeira vez, o relatório do desmatamento traz dados específicos sobre municípios e Estados - seis dos quais tiveram redução dos índices. "Isso não pode ser desprezado", diz Capobianco.

Em entrevista ao Estado, ele fala dos fatos históricos por trás do desmatamento na Amazônia e diz que as medidas adotadas pelo governo deverão começar a surtir efeito nos próximos anos. "Achamos que 2005 será um ano bom."

Como o senhor explica esse aumento no desmatamento?

Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que nada do que eu disser aqui é no sentido de minimizar o que está ocorrendo. Não temos síndrome de Pollyana, de ficar pintando de otimismo um cenário obviamente negativo. O que acontece na Amazônia é resultado de um quadro macroeconômico que vem sendo implementado na região há décadas. Até os anos 80, a maior parte do desmatamento nascia de uma política de incentivo fiscal do governo federal, pela qual o indivíduo precisava desmatar para conseguir o reconhecimento de posse da terra. Isso acabou em 1990, quando o governo cancelou esse sistema. A resposta foi que o desmatamento caiu drasticamente e chegou ao seu índice mais baixo em 1991. Fica evidente que a capacidade de operar na floresta dependia economicamente de incentivo fiscal. Mas, a partir de 1992, o desmatamento voltou a crescer e vem desde então acompanhando o ritmo de desenvolvimento do País. Quanto há um período de euforia econômica, aumenta o desmatamento. Isso está claro.

Mas o interesse do País é justamente crescer o máximo possível. Como fazer isso sem destruir a Amazônia no processo?

Quando a ministra Marina Silva assumiu o governo, a primeira providência dela foi jogar a questão da Amazônia no núcleo do governo. Se o desmatamento não é só um problema de controle e fiscalização, mas conseqüência de fatores socioeconômicos complexos, ele não pode ser resolvido sem a participação de todos os atores responsáveis pelos diferentes segmentos - ordenamento fundiário, sistemas de crédito, política agropecuária, industrial e assim por diante. Você tem um conjunto de ações, distribuídas por diferentes ministérios, que, se não forem operadas todas na mesma direção, o problema não se resolve. É essa mudança que está sendo processada no governo: ministérios trabalhando de forma integrada. É o que a gente chama de política de governo, visando a mudanças estruturais na Amazônia.

E quais os resultados até agora?

Em junho de 2003 foi criado o comitê interministerial - com representantes de 11 ministérios e sob o comando da Casa Civil - incumbido de elaborar o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal. Esse plano foi preparado, distribuído, revisado e lançado em março de 2004. Aí você começa a operar modificações na forma de atuação do governo que nunca foram operadas antes. Isso tem um tempo de maturação. Podemos lamentar, mas não é a curto prazo.

Como esse plano está sendo posto em prática?

Uma das medidas mais importantes desde então foi a Portaria 10 do Incra, de dezembro de 2004, que modifica todos os procedimentos de registro para reconhecimento de posse da terra. Antes, o que acontecia: você procurava o Incra, dizia que tinha uma terra em tal lugar, protocolava um pedido de registro, abria um processo e obtinha um documento em papel timbrado e tudo mais. Com isso vinha um número de CCIR - Certificado de Cadastramento de Imóvel Rural. Isso criou uma indústria de grilagem de terras públicas na Amazônia inacreditável. A primeira coisa que todo mundo fazia era desmatar, para dizer que estava fazendo alguma coisa com a terra. Com o agravante de que há mais de 20 anos o Incra não ia a campo verificar a veracidade daqueles documentos.

E como funciona agora?

Hoje você recebe apenas um documento protocolar, que não vale absolutamente nada. Além disso, o Incra deu um prazo para que os proprietários com o documento antigo apresentassem provas de que eram mesmo donos da terra. O que aconteceu: ninguém entregou nada, só uma parcela muito pequena. Cerca de 10.300 CCIRs foram inibidos, e serão muitos mais ainda. Agora: isso foi feito em dezembro de 2004 e o primeiro prazo do Incra venceu em fevereiro de 2005. Então os efeitos disso ainda não foram sentidos.

Uma das prioridades do plano é a criação de unidades de conservação. Até que ponto isso ajuda a conter o desmatamento?

Em dois anos foram criados 7,7 milhões de hectares de unidades de conservação. É um recorde histórico. Mas, mais do que isso, tem de ser destacado algo fundamental: o fato de que essas unidades não foram criadas em áreas remotas da Amazônia, mas na frente da fronteira de expansão da fronteira agrícola. É uma ação que certamente vai ter impacto nos próximos anos. As unidades foram criadas no final de 2004 e começo de 2005 - então são, ainda, muito recentes.

E quanto a ações de fiscalização e controle?

Nesse aspecto temos uma ferramenta nova, que é o Deter (sistema da Detecção de Desmatamento em Tempo Real, operado via satélite pelo Inpe). Por que isso é fundamental? Até agora os dados do Inpe tinham uma defasagem de tempo muito grande. Quando a gente olhava os dados de 2003, víamos um desmatamento que já havia ocorrido. Este ano, não temos desculpa. Com o Deter podemos acompanhar a evolução do desmatamento e operar durante todo o ano. Pela primeira vez, o relatório traz o detalhamento do desmatamento por município e por Estado, o que revela coisas importantes. Os gráficos permitem verificar que há reduções importantes em locais que antes estavam em situação crítica, assim como aumentos em regiões que antes não eram tão problemáticas. Isso serve para guiar os esforços de fiscalização. Outra coisa fundamental é a parceria com o Exército, que faz uma diferença brutal. Os funcionários do Ibama antes eram recebidos a bala e agora isso não ocorre mais.

Se tantas coisas boas estão em andamento, qual é o problema atualmente?

Os números causam indignação, e com razão. Ninguém está negando que os números são altos, pelo contrário. Vamos reduzir esse problema com medidas estruturais, só que isso tem um tempo de maturação. Outro aspecto importante é que estamos em pleno crescimento econômico, com a atividade agropecuária na Amazônia crescendo a níveis muito acima da média nacional. Então a pressão é muito grande.

Quem são os principais culpados nessa história?

Não dá para generalizar. Você tem madeireiro que é um devastador ao cubo, assim como madeireiro que faz tudo certinho e que pode ser um parceiro vital na conservação. O mesmo vale para a pecuária e a agricultura. Nosso entendimento é que há uma parcela crescente de produtores na Amazônia que querem produzir com responsabilidade. Vamos disputar esses produtores. Se você classifica todo mundo como vilão, você afasta possíveis parceiros e passa uma idéia errada para a sociedade, uma coisa do bem e do mal. Não é assim. Cada vez mais você tem governadores, parlamentares e a sociedade convencidos de que o futuro da Amazônia é manter a floresta em pé. Dizer que todo madeireiro é vilão é um erro. Tem uma parcela que tem de ir para a cadeia, mas isso não é o quadro geral da Amazônia.

E qual é o quadro em Mato Grosso? O Estado foi, sozinho, responsável por quase 50% do desmatamento em toda a Amazônia.

Na terra privada, o sujeito pode desmatar, por lei, 20%. E 20% de cada propriedade na Amazônia é um número enorme. Aí entra outro aspecto importante: separar o que é desmatamento legal do ilegal. Estamos trabalhando nesse sentido. Nosso compromisso é que a partir deste ano teremos esse dado separado. Um aspecto super importante é que há dois atores com os quais precisamos lidar na Amazônia. Um é o proprietário que tem direito legal de desmatar. Esse a gente tem de disputar e convencer que é melhor não desmatar, tornando o manejo florestal algo mais interessante do que a conversão da floresta. O outro é o desmatador ilegal, que a gente tem de pegar e pôr na cadeia. Em Mato Grosso temos uma parcela grande de pessoas que precisam ser convencidas.

Qual é a estratégia do ministério para os próximos anos?

A conclusão de tudo isso é que não se pode avaliar a eficácia do plano com base no ano passado. Avaliar o plano e inutilizá-lo com dados de agosto de 2004 é uma ação que só serve ao interesse daqueles que não querem mudar o modelo de desenvolvimento da Amazônia. E tem uma parcela muito grande de pessoas que não quer mudar, que quer continuar grilando, desmatando e vendendo. Não podemos ser ingênuos. A especulação imobiliária da terra no Brasil é a maior catástrofe ambiental da nossa história. O conceito que foi introduzido no Brasil na época da colônia é o da terra descartável: o sujeito não tinha interesse de se fixar na terra e produzir de forma perene - queria abrir a terra, tirar tudo que podia dela rapidamente, vender para alguém e obter outra terra da Coroa. Claro que não foi tudo assim, mas criou-se um modelo de desmatamento desenfreado para especulação da terra. É isso que temos na Amazônia hoje. O plano, para nós, é o que vai mudar a situação de forma estruturante.