Título: O futuro das APPs
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Fonte: O Estado de São Paulo, 24/05/2005, Editoriais, p. A3

Os legisladores imaginaram estar protegendo as áreas de preservação permanente (APPs) com as mais rígidas normas ambientais. Topos de morros, entornos de nascentes e margens de rios, conforme o Código Florestal, de 1965, só poderiam sofrer algum tipo de intervenção se se tratasse de projetos de "utilidade pública e interesse social". Como nunca se definiu o que seja um empreendimento de utilidade pública e interesse social, a lei foi desrespeitada por quase duas décadas. Nas APPs localizadas em perímetros urbanos, loteamentos clandestinos promoveram o desmatamento das vizinhanças de importantes mananciais e a poluição dos recursos hídricos; nos topos de morros e nos rios das diversas regiões do País, 80% da atividade mineradora se instalou. O dano é irreversível. Hoje, para o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), resta regulamentar o uso e a ocupação das APPs a partir de um cenário, em grande parte, destruído.

Durante as comemorações da Semana da Mata Atlântica, realizadas em Campos do Jordão, o Conselho aprovou o texto-base de uma resolução que regulamenta o uso das APPs e define quais projetos podem ser realizados em seus limites. Os conselheiros chegaram à conclusão de que é impossível reverter os resultados negativos da inércia do poder público, que permitiu a invasão dessas áreas.

Transferir, por exemplo, os milhões de pessoas que moram em áreas de preservação de mananciais em regiões como a Grande São Paulo é tarefa inimaginável. Assim, resta oferecer infra-estrutura aos verdadeiros bairros que se formaram nos entornos das represas. É preciso que o esgoto que hoje corre a céu aberto deixe de contaminar a água e poços deixem de ser perfurados, comprometendo o lençol freático da área.

Nas áreas mais afastadas dos centros urbanos, as mineradoras também não podem ser transferidas. "Se você proíbe a mineração em APP, não tem mais mineração no Brasil", resume Dominique Louette, assessora técnica do Conama. Afinal, é nesses locais que se extraem, por exemplo, a areia e a brita de que depende a indústria da construção civil.

Representantes do Conama e do Ministério do Meio Ambiente se orgulham de ter resumido no texto-base da resolução uma proposta realista. O texto-base relaciona como atividades de utilidade pública a pesquisa arqueológica, a instalação de áreas verdes (parques) em zonas urbanas e os empreendimentos de mineração. Fazem parte dos projetos de interesse social a reurbanização das áreas ocupadas por população de baixa renda e a construção da infra-estrutura necessária para a preservação da área.

"É importante que a legislação tenha os pés no chão para não ser desmoralizada", avalia o procurador de Justiça e conselheiro do Conama Antônio Herman Benjamim.

Mas nada assegura que essas normas que deverão ser aprovadas - a versão final da resolução deverá ser votada em junho - serão respeitadas. Afinal, há um item de fundamental importância para a proteção das APPs, que nunca é devidamente considerado, mas cuja ausência anulará qualquer esforço empreendido para a preservação dessas áreas - a fiscalização.

A iniciativa de levar infra-estrutura para as favelas sem antes contar com um esquema de vigilância eficiente contra novas invasões servirá apenas para incentivar outras pessoas a erguer ali seus barracos. Além de anistiar e premiar quem infringiu a legislação, a ação isolada trará resultado oposto ao esperado. Funcionará como as tantas anistias concedidas pelos governos municipais, principalmente em época de campanha eleitoral, àqueles que desrespeitaram o zoneamento urbano, as normas de uso e ocupação do solo ou as áreas de preservação. Esses perdões sempre incentivaram mais invasões, com a certeza da impunidade e da premiação.

Na proposta, o ordenamento territorial das ocupações por pessoas de baixa renda e a construção de infra-estrutura se inserem na relação de projetos de interesse social. Só será assim se, efetivamente, for contida a expansão dessas ocupações e evitada a poluição das águas e o desmatamento dos mananciais, que comprometem seriamente o abastecimento de milhões de pessoas.