Título: Protestos são ameaça à democracia
Autor: Eduardo Nunomura
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/06/2005, Internacional, p. A16

A democracia já é refém dos protestos na Bolívia. Em El Alto, berço de uma legião de manifestantes que paralisam a capital do país, talvez nem democracia haja mais. Desde ontem, movimentos sociais decidiram desconhecer o poder das autoridades atuais e instalar uma assembléia popular, cujo quartel é a Central Operária Regional (COB). Garantem que vão se autogovernar com representantes da COB, movimentos de camponeses e a Federação de Juntas de Vizinhos. "Quem deles representa nossos anseios?", pergunta Dionisio Escobar, dirigente de um comitê de vigilância de 54 comunidades do altiplano. "Ninguém. Nós administraremos nosso país. Foram 500 anos de luta em que fomos massacrados, com os ricos ficando mais ricos e os pobres mais pobres."

O anúncio de desobediência civil foi apenas um ato formal, porque na prática os movimentos sociais já não vêem os atuais políticos e governantes como seus legítimos representantes. Essa é, no fundo, a questão que resume o emaranhado de convulsão social que vive a Bolívia. Os movimentos sociais são fortes o suficiente para derrubar governos, mas incapazes de formar um grupo hegemônico que consiga governar.

Bloqueios nas estradas são um exemplo de que os manifestantes ignoram o poder público. Nem carros de polícia ousam ultrapassar essas barreiras. "Não há confronto com os policiais. Eles se aproximam e, como os outros, dão a volta e se vão", diz Pedro Gutiérrez, servidor público e "responsável" por um bloqueio de acesso a El Alto, na zona de Pasankeri. "Um novo sistema comunitário deve ser criado de acordo com nossos usos e costumes, que respeitem nossas diferenças."

Nos últimos dois dias, as palavras massacre, guerra civil e banho de sangue estão na boca de todos, de governantes que insistem no jogo da sobrevivência política, até de camponeses e líderes sindicais que ignoram o quanto lutam por causas distintas. A única coisa em comum é a vontade de estar no poder.

Os primeiros travam no Congresso uma luta para ver quem vai assumir a presidência. Os demais preferem partir para o radicalismo e conquistar, na marra, a autoridade institucional.

"A política democrática não é mais possível neste momento, pois o próprio presidente e seus possíveis sucessores não têm condições de governar", resume o sociólogo e comunicador social Cesar Rojas Ríos. Segundo ele, há grande descompasso entre o que querem os manifestantes e o que os parlamentares desejam oferecer. "Há um artificialismo político gigantesco." O Congresso, presidido por Hormando Vaca Díez, é o resumo dessa separação de interesses.

Formado por duas casas, o Senado e a Câmara, o Congresso abarca hoje políticos de direita e centro, em sua maioria, e de esquerda. São 27 senadores (3 para cada um dos 9 departamentos bolivianos e eleitos por listas partidárias) e 130 deputados (68 eleitos diretamente e 62 por voto distrital). A atual bancada está no poder desde 2002 e fica até 2007. Os partidos de esquerda, Movimento ao Socialismo e Movimento Indígena Pachakuti, que poderiam atender parte dos anseios dos manifestantes, têm 8 cadeiras no Senado e 33 na Câmara. Mas há agremiações políticas que não têm representação. É o caso do Movimento sem Medo (MSN), cujo membro Juan del Granado foi eleito prefeito em La Paz.

Em 2004, foi criada uma norma particular para que grupos de cidadãos participassem das eleições municipais. Em vez de aumentar as chances de os movimentos sociais começarem a ver-se representados no cenário político, esses grupos permitiram que toda sorte de líderes populistas chegasse ao poder, de indígenas bem-intencionados a caudilhos militares, explica a socióloga Sonia de Zapata. "Parecia que eles poderiam aplacar o descontentamento da população, mas na prática serviram a interesses pessoais."

O dirigente do MAS, o líder cocaleiro Evo Morales, é um reflexo dessa democracia torta. Enquanto garante que respeita o sistema democrático, aposta na violência dos protestos e no recrudescimento da inquietude popular para pleitear a convocação de eleições gerais, uma Constituinte e a nacionalização do gás boliviano.