Título: Entre milongas e conversa fiada
Autor: Marcelo de Paiva Abreu
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/05/2005, Opinião, p. B2

Desde o início do atual mandato presidencial, tornou-se quase que compulsório, entre intelectuais bem-pensantes, aplaudir a política externa como um dos pontos altos da atuação do governo. Com freqüência, fazia-se o contraponto com a política econômica, que estaria conduzindo o País ao precipício. As vertentes mais paranóicas de nacionalismo rastaqüera andaram até farejando pretensos "quintas-colunas". A menção, do general franquista Emílio Mola, em meio à Guerra Civil Espanhola, era aos simpatizantes fascistas em Madri, "coluna", que deveria ser somada às quatro colunas convencionais que assediavam a capital republicana. A expressão só teria sentido hoje, quando aplicada aos críticos da política externa brasileira, se usada com a intenção de denunciar que poderiam estar tramando a entrada do bom senso na cidadela da irracionalidade itamaratiana. Passado o tempo, o que se vê? A política econômica, embora ainda alvo de críticas fáceis, mais propensas a condenar a política de juros do que a escalada de gastos, teve êxito inconteste. O mesmo não pode ser dito da política externa. Não se trata de "praticar o falso jogo (sic) de demonização do Itamaraty". O Itamaraty é instituição modelar com grandes serviços prestados à Nação. Mas a admiração que desperta não deve paralisar a avaliação permanente de suas políticas. Especialmente quando a política externa passou a ser atribuição de expressivo número de auxiliares diretos do presidente da República, configurando espetáculo de multicefalia, que viola princípios básicos de qualquer manual elementar de administração. O presidente da República agrava as dificuldades ao contribuir com improvisos que, a cada 15 dias, colocam a diplomacia brasileira em posição embaraçosa. Mais do que nunca é fundamental analisar virtudes e defeitos da política externa com base em resultados.

Nas últimas semanas a política externa vem colhendo revezes sucessivos: a derrota na eleição na Organização Mundial do Comércio (OMC), a falsa posição criada pelo destempero das declarações presidenciais quanto ao interesse brasileiro na Área de Livre Comércio das Américas (Alca), dificuldades na tentativa de reativação das negociações Mercosul-União Européia e possível esvaziamento da intrigante cúpula árabe-latino-americana. De longe o maior problema, entretanto, é a deterioração das relações com a Argentina, explicitada em declarações cuidadosamente vazadas para a imprensa argentina pelo presidente Kirchner e pelo ministro Bielsa, denunciando o excessivo apetite protagônico por parte do Brasil e a baixa prioridade que tem sido atribuída por Brasília ao Mercosul. Mesmo o generoso uso de panos quentes no Brasil - pa¿os fríos para os argentinos - é totalmente insuficiente para afastar o sentimento de que existem obstáculos graves ao bom entendimento entre Buenos Aires e Brasília.

Por mais objetável que seja a postura argentina ao tentar capitalizar eleitoralmente a exacerbação do sentimento antibrasileiro em setores nacionalistas, a verdade é que, enquanto alguns dos queixumes são ridículos, outros não são destituídos de fundamento. O propalado "desconforto" do governo argentino com a indicação de Murilo Portugal como secretário-executivo do Ministério da Fazenda, além de impertinente, é baseado em interpretações mitológicas sobre o papel que o Brasil teria desempenhado em meio ao calote argentino. Buenos Aires parece recusar-se a reconhecer que não há solidariedade que consiga dar conta do hiato entre a postura de um país que foi forçado a doloroso default e a de outro que decidiu optar por também doloroso processo de ajuste, sem default. A precisão da imprensa argentina em relação ao episódio talvez possa ser avaliada com base na constatação de que a fotografia publicada pelo Clarín como sendo de Murilo Portugal é, de fato, de Marcelo Portugal Gouvêa, presidente do São Paulo Futebol Clube.

Mas há consistência na acusação de que o Brasil tem demonstrado exagerado apetite protagônico - OMC, crise equatoriana, reforma da ONU - e tende a não levar em conta as hipersuscetibilidades do vizinho. É ingênuo acreditar que países com importância geopolítica média, como é o caso da Argentina, possam ter entusiasmo por projeto que amplie o Conselho de Segurança das Nações Unidas incluindo o Brasil. Se o projeto da ampliação do Conselho de Segurança ocupar lugar central na política externa brasileira, um corolário inevitável é a deterioração das relações com Buenos Aires. Especialmente se a postura brasileira quanto ao Mercosul continuar a ser a de paralisia complacente. Há também respaldo para a alegação argentina de que a criação da Comunidade Sul-Americana de Nações deveria ter sido precedida por ações que saneassem as dificuldades crescentes enfrentadas pelo Mercosul, com base no princípio elementar de fazer primeiro as coisas mais importantes. Infelizmente, na diplomacia não existem as limitações do mundo físico que tornam inexorável que se construam os alicerces de uma casa antes do seu telhado.

O contencioso bilateral político e econômico com a Argentina não pode, de fato, ser resolvido na Bombonera ou no Maracanã, como observou alta fonte do governo brasileiro. Talvez tenha sido ato falho, pois o Maracanã está fechado para obras por bom tempo. Se cabe metáfora esportiva, seria o caso de nivelar o campo de jogo com a Argentina. Isso significaria repudiar de forma taxativa demandas argentinas por salvaguardas automáticas que desmoralizariam o Mercosul até mesmo como zona de livre comércio. E concentrar a atenção em atenuar as conseqüências de assimetrias relevantes como as implícitas em políticas diferenciadas de atração de investimentos nos diversos níveis de governo, falta de harmonização de regimes fiscais e acesso diferenciado a crédito subsidiado.