Título: O triplo air bag e o déficit nominal
Autor: Dionísio Dias Carneiro
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/06/2005, Economia & Negócios, p. B2

No artigo publicado há duas semanas, concluí que, diante da iminente crise, o governo não teria outra saída a não ser recuperar a blindagem da confiança construída a duras penas nos últimos anos. Isso porque a administração pública brasileira está sendo metralhada, por causa do fracasso de seus zelosos alquimistas. Estes, ao tentarem transformar a minoria ruidosa nas ruas em maioria operacional no Congresso, produziram uma chocante organização de troca de favores que pode desmoralizar o governo Lula. Diante dos desdobramentos da crise, interessa, a todos os brasileiros, que seja vislumbrada uma estratégia para que a desconfiança não interrompa, de forma significativa, os rumos da economia brasileira. Nossa economia entra nos eixos com apostas otimistas na queda da inflação, na consolidação do balanço de pagamentos e nas possibilidades de queda do custo de financiamento do governo, que possibilitam a retomada dos investimentos privados de longo prazo. Mesmo ao risco de abusar de metáforas - úteis para economizar palavras, mas sempre perigosas -, podemos dizer que o governo faz manobras arriscadas para salvar-se da desmoralização. Mas conta com um triplo air bag administrado pelo ministro Palocci. O primeiro é uma taxa de câmbio valorizada, que foi útil para reduzir a inflação, mas que permanece livre. Esta pode até depreciar-se mais de 30% em termos nominais sem bater o recorde de dois anos atrás nem criar pânico. Isso porque é alimentada por um saldo comercial extraordinariamente elevado. A depreciação decorrente de cenário desfavorável ampliará as exportações e diminuirá o risco de desequilíbrio externo. O segundo são os juros nominais, tão elevados que sinalizam juros reais excessivamente altos, pois a taxa de inflação esperada caminha para abaixo dos 6%. As expectativas para 12 meses estão diminuindo e devem, em pouco tempo, sinalizar uma queda de mais de 1 ponto porcentual para o ano das eleições. Um terceiro air bag foi anunciado ao final da semana pela Secretaria do Tesouro: uma reserva de caixa que permitiria ao governo, em caso de necessidade, passar quatro meses sem ir a mercado para vender títulos. É claro que estes três air bags não são acionáveis de forma independente. Suas eficácias dependem de que continue a haver habilidade para proteger o núcleo de racionalidade da política macroeconômica. É isto que alimenta a crença de que o governo não precisará recorrer a políticas populistas para diminuir sua perda de popularidade. Para muitos analistas, a saída de Dirceu facilita a desenvoltura de Palocci contra as pressões mais radicais de economistas do PT, que nunca engoliram a estratégia macroeconômica adotada pelo governo Lula. Se este for o caso, o triplo air bag poderá evitar que uma nova onda de desconfiança, gerada, por exemplo, por um clima político de mobilização destrutiva, capitalize a minoria raivosa e torne mais difícil o financiamento ao Tesouro. A partir desse colchão financeiro, por exemplo, o governo pode melhorar as perspectivas de déficit nominal a partir já deste ano. Neste quadro, a proposta de adoção de uma meta para zerar a necessidade adicional de financiamento, ou de déficit nominal zero, pode ser útil. Como meta de longo prazo, ela é nítida e organizadora, pois consolida o compromisso permanente com a estabilização. O governo Clinton, por exemplo, colheu os benefícios da chamada lei Gramm-Rudman, a ponto de ter estabelecido um marco que tirou dos democratas a pecha de gastadores, aliás, prontamente absorvida por Bush. Há quem veja na proposta uma forma de diminuir a autonomia do Banco Central de fixar juros. Não creio que levantar o farol do compromisso fiscal para horizontes mais longos que um mandato possa ser feito sem algum risco de mau uso. Não é hora de pequenez. Mas, mesmo a curto prazo, a sinalização de uma meta nominal que facilite a convergência para um déficit zero, adequadamente ajustado para o ciclo econômico, permite a esterilização dos ganhos a serem obtidos com a queda dos juros. Para os próximos anos, isso daria a certeza de que a queda nas despesas de juros, herança mais dramática do esforço de resistência à inflação, não abriria espaço para o crescimento das despesas públicas. Ao contrário, contida a ideologia do crescimento via expansão do Estado, estaria aberto o espaço para a diminuição da carga tributária, o que seria permitido pela quebra do círculo vicioso que ameaçou instalar no País, de aumento das atribuições do governo e compromissos futuros cada vez maiores com o gasto público.