Título: `Vocês sabiam e nada fizeram¿
Autor: Washington Novaes
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/06/2005, Espaço Aberto, p. A2

A inacreditável miséria da maior parte da chamada África subsaariana voltou a ficar em evidência com o encontro em que o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, tentou convencer o presidente George Bush a aderir a um plano de ajuda dos países industrializados aos países africanos, que permitiria completar US$ 50 bilhões até 2010 (dos quais US$ 15 bilhões caberiam aos EUA). Não conseguiu. Só se avançou com o perdão de US$ 15 bilhões em dívidas de 14 países africanos e quatro latino-americanos, ainda assim à razão de US$ 1,5 bilhão por ano. Na sexta-feira passada, neste jornal, o conhecido economista Jeffrey Sachs escreveu que Bush não hesitou em cancelar US$ 200 bilhões anuais em impostos para os norte-americanos mais ricos, mas não aceitou entrar com US$ 15 bilhões para os africanos miseráveis. Hoje, a ajuda dos EUA à África é de US$ 3 bilhões anuais, dos quais metade para pagamento a consultores e US$ 500 milhões em transporte de alimentos, disse ele. O tema da ajuda e da redução da pobreza no mundo não consegue avançar, nem mesmo incluído entre as Metas do Milênio da ONU, que quer reduzir à metade, até 2015, os 840 milhões de pessoas que passam fome. Mas há quem diga que a redução está ocorrendo à razão de 2,1 milhões de pessoas por ano. E nesse passo serão necessários 210 anos para cumprir a meta ¿ quando outros tantos miseráveis se terão somado, com o crescimento populacional. Outra conta mostra que a ajuda a esses países hoje está na casa dos US$ 68 bilhões anuais, quando eles têm pago, em juros de suas dívidas, mais de US$ 400 bilhões/ano. ¿Quem ajuda quem?¿, perguntou um diplomata numa sessão da ONU que tratou do tema. Na verdade, a ajuda dos países centrais aos mais pobres, que era de 0,36% do seu PIB anual em 1992 ¿ e eles se comprometeram a aumentar para 0,70% na Agenda 21 ¿, está hoje em 0,22%. O Brasil mesmo já tentou mudar o quadro, propondo em Davos e em outros fóruns a criação de taxas sobre transações financeiras para ampliar a ajuda. Mas recebeu um sonoro ¿não¿ dos EUA ¿ apesar de 1 bilhão de pessoas viverem hoje com menos de um dólar por dia; cerca de 2,5 bilhões, com menos de dois dólares. Nesse quadro, os países industrializados têm um produto bruto anual de US$ 30 trilhões (US$ 12 trilhões nos EUA), com uma população de menos de 600 milhões de pessoas (pouco mais de 19% do total), enquanto os 48 países mais pobres, onde vivem também 600 milhões de pessoas, têm um produto bruto anual conjunto inferior aos ativos das três pessoas mais ricas do mundo, juntas. Os bilionários do mundo, algumas centenas, juntos, têm patrimônio de US$ 1,9 trilhão, diz a ONU. Não espanta, assim, que o número de pobres na África tenha dobrado de 1981 a 2001, segundo a Organização para a Alimentação e a Agricultura (FAO), da ONU. Nem que estejam nesse continente 23 dos 36 países onde a falta de alimentos é dramática, após guerras, secas e ataques de gafanhotos, que dizimaram parte das colheitas. Na África subsaariana os miseráveis vivem hoje com menos de 50 centavos de dólar (cerca de R$ 1,20) por dia. Se na América Latina são perto de 50 milhões de pessoas que vivem com menos de um dólar por dia, na África são mais de 300 milhões; no Extremo Oriente, 400 milhões. Aqui mesmo, no Brasil, lembrou o IBGE há poucas semanas, a ¿dívida social¿ é enorme. Diz o Atlas da Exclusão Social, escrito por 15 professores universitários (Estado, 21/1/2005), que precisaríamos de R$ 7,2 trilhões (uns cinco PIBs anuais) para pagá-la, eliminando os déficits na saúde, na educação, na habitação, na Previdência, etc. Temos 13 ¿bolsões de miséria¿ em todas as regiões do País. Mais de 50 milhões de pessoas abaixo da linha de pobreza, quase um terço da população. A segunda pior distribuição da renda no mundo. Surpreendentemente, relata a revista norte-americana Time (6/6/2005) que boa parte das chamadas empresas transnacionais está, diante da competição acirrada e dos baixos índices de lucratividade nos segmentos de renda mais alta, redirecionando sua estratégia de vendas exatamente para incluir os segmentos mais pobres dos mercados no mundo, que, com mais de 3 bilhões de pessoas, teriam um potencial de compra da ordem de US$ 13 trilhões anuais. Só que as estratégias exigem a formação de redes de milhares de vendedores para ir de porta em porta oferecendo itens que podem custar apenas alguns centavos de dólar, como sabonetes e xampus. Mas podem oferecer também bens que começam a ser produzidos especificamente para esse mercado, como telefones celulares a US$ 40, com baterias que duram seis meses (para zonas sem energia). Ou computadores a US$ 100. A previsão é de vender nesses mercados 2 bilhões de aparelhos celulares em, no máximo, dez anos. Não falta quem se preocupe com o novo quadro. Como a Oxfam, instituição com atuação internacional, que disse à revista temer pela sorte dos pequenos comerciantes em cada localidade. É verdade que pobres também querem celulares e computadores. Mas a questão não se esgota aí. Na África, mostrou há uns dois anos estudo da ONU, a substituição do comércio local por super e hipermercados levou ao desaparecimento de quase 300 mil pequenos estabelecimentos, ao aumento do desemprego e da fome. Porque nesse comércio as pessoas mais pobres conseguiam comprar alimentos a crédito, ¿na caderneta¿. Hoje não têm mais essa opção. Como se desatará o nó da concentração da renda ¿ no mundo e no Brasil? ¿As futuras gerações nos cobrarão isso¿, disse em Johanesburgo, em 2002, o presidente Jacques Chirac, da França. ¿Vocês sabiam e nada fizeram.