Título: O sonho americano
Autor: João Mellão Neto
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/07/2005, Espaço Aberto, p. A2

¿Tragam-me os vossos cansados, os vossos pobres Vossas massas carentes que anseiam por respirar livres... Enviem-me os desabrigados, títeres da tempestade: Eu ergo minha lanterna junto à porta dourada¿ Inscrição aos pés da Estátua da Liberdade Recente pesquisa realizada nos EUA constatou que o personagem mais admirado pelos norte-americanos é Ronald Reagan. Ele ficou à frente de George Washington e até mesmo de Abraham Lincoln. Para nós, brasileiros, é difícil compreender o motivo dessa preferência. O que teria feito o presidente Reagan para tanto? Não foi ele que criou o delirante projeto Guerra nas Estrelas? Não foi ele que intitulou a União Soviética o ¿império do mal¿? Não seria ele, caso vivesse no Brasil, rotulado de ¿extrema direita¿? Tudo isso é verdade.

O que nos foge à percepção é que, apesar de tudo isso, ele encarnou, melhor do que ninguém, os arquétipos do american dream ¿ o sonho americano. E isso, para os norte-americanos, não tem preço.

A inscrição na Estátua da Liberdade não está lá em vão. Foi colocada no século 19, para que todos os imigrantes a lessem e a incutissem em seu espírito. Aquela era a terra das oportunidades, um lugar onde, de qualquer lugar que viessem, os novos americanos encontrariam a liberdade.

Um paraíso onde não havia privilégios hereditários ou distinção de classes e camadas sociais oriundas do berço. Uma nação que se construía a partir, e exclusivamente, do mérito pessoal de cada um.

A América, apenas um século depois de sua independência, já alçava à condição de nação mais rica da Terra. E se mantém no topo até hoje. Por mais que os intelectuais terceiro-mundistas desdenhem dela, havemos de reconhecer que os americanos não chegaram lá por acaso. Algo de especial e único eles possuem para terem logrado tamanho êxito. E a explicação para isso, mais do que qualquer outra, é a crença inabalável, quase religiosa, nos pressupostos do sonho americano.

De que se trata, afinal? Rios de tinta teriam de ser gastos para descrever esse sonho ¿ um autêntico mito ¿ na sua inteireza. Mas crianças americanas, desde a mais tenra idade, embora não saibam decodificá-lo, o entendem e nele acreditam por completo. Quem mais se aproximou de sua essência foi o sociólogo alemão Max Weber, no início do século passado.

Ele escreveu A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, um pequeno livro que foi eleito pelos especialistas ¿a obra mais importante de todo o século 20¿. Vale a pena lê-lo. Se o fizéssemos, talvez compreendêssemos o porquê de os americanos terem chegado aonde chegaram.

Algumas pistas. O povo americano é, de longe, o mais devotamente religioso dentre todos os das nações desenvolvidas. Mais de metade dos americanos, por exemplo, acredita que os EUA têm proteção especial de Deus; 60% acreditam piamente que a força da sociedade americana ¿se deve à fé religiosa de seu povo¿; nada menos que 70% dos americanos, mesmo entre os com grau universitário, acreditam na existência do diabo; dois terços do povo afirmam que ¿sua fé religiosa se entremeia profundamente em todos os aspectos de sua vida¿; mais de metade dos americanos acreditam que ¿Deus fez dos americanos o seu povo escolhido¿.

Sendo um ¿povo eleito¿, não é à toa que os americanos são considerados ¿o povo mais patriótico do mundo¿. Estrondosos 98% dos jovens da América se declaram muito orgulhosos de seu país.

O fervor religioso, por si só, não explicaria nada. Mas ocorre que o Deus americano é muito diferente do nosso. O Deus católico é misericordioso, indulgente e adora perdoar os nossos pecados. Basta que O louvemos, incessantemente, para garantir a nossa vaga no Céu. O Deus americano, protestante e calvinista, não é tolerante nem se deixa seduzir por adulações. Ele já nos separou, desde antes do nascimento, entre eleitos e não-eleitos. E nada do que façamos em nossa existência terrena pode mudar essa condição.

Se não adianta fazer nada, por que nada nos conduzirá à salvação, de que adianta lutar? É aí que vem o lado mais implacável da rígida moralidade calvinista. Ninguém pode saber, enquanto vivo, se é ou não eleito. Supõe-se que os eleitos, por serem abençoados por Deus, levarão naturalmente uma vida de virtudes.

A conduta de cada um não aceita o menor deslize. Qualquer transgressão implica saber-se, de antemão, um não-eleito. A força de Deus, assim, não se impõe pela coerção da Igreja. Ela é muito mais terrível porque atua no nível da consciência individual. E nessa instância não há perdão.

O espírito protestante implica a ética do trabalho. Deus entende que, no mesmo nível da prece, Ele só é louvado pelo trabalho extenuante, diligente, perseverante e impecavelmente honesto. Os que prosperam é porque são abençoados por Deus e, portanto, eleitos. Os que fracassam são vistos como indolentes, pusilânimes e, portanto, condenados ao inferno. A propósito, dois terços dos americanos acreditam piamente na existência do inferno.

Por se acreditarem um povo escolhido por Deus, os americanos são extremamente autoconfiantes, dispõem-se a tomar iniciativas e a correr mais riscos do qualquer outro povo na Terra. O sonho americano, em síntese, é isto: uma profunda crença de que, pelo trabalho e pelo empenho, todos e cada um ¿ independentemente de cor, raça ou origem ¿ haverão de ter o seu lugar ao sol.

De nada adianta a nós, estrangeiros, criticar a América, deplorar sua arrogância, invejar sua riqueza. Compreenderíamos melhor os nossos irmãos do norte se entendêssemos, de verdade, a imensa majestade do ¿sonho americano¿. É ele que dá asas à grande águia da América. E ela voa, altaneira, sobre a cabeça de todos nós.