Título: "Lula precisa reconstruir sua biografia"
Autor: Ariosto Teixeira
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/07/2005, Aliás, p. J3

Um dos maiores líderes da redemocratização brasileira, o deputado Ulisses Guimarães, dizia que o combustível da política eram a saliva e o tempo. "O tempo não perdoa quem não sabe trabalhar com ele", ensinava, segundo as lembranças do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso contadas na longa entrevista que concedeu, no final de seu terceiro ano de mandato, em novembro de 1997, ao jornalista Roberto Pompeu de Toledo para o livro O Presidente Segundo o Sociólogo. Quando alguém dizia a Ulisses que havia tido uma conversa política que lhe parecera importante, o velho parlamentar perguntava logo: "Quanto tempo?" Queria saber sempre quanto durou porque, para ele, lembrou FHC, "uma boa conversa não poderia ser rápida". Era preciso gastar o combustível inesgotável da conversa.

A sabedoria dos políticos mais velhos parece especialmente útil aos líderes de um sistema político como o brasileiro. Os partidos são muitos e frágeis, mas há uma tradição parlamentar antiga, que começa nos tempos do Império e gira em torno de um eixo central: o governo e seu chefe, o presidente da República. Da liderança presidencial exige-se sempre o máximo. Se ele falhar no seu papel, o sistema entra em crise.

"Estamos num desses momentos cruciais em que as coisas se depuram mediante a ação institucional do Congresso e tudo depende do que o presidente fizer para que se retomem o rumo e a normalidade", anota o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), duas vezes governador do Ceará, nome sempre cogitado por seu partido para disputar a Presidência da República. "Só Lula pode fazer o gesto capaz de salvar sua biografia."

O senador cearense é conhecido por sua visão sensata do processo político. Tasso é seguramente um dos integrantes do grupo que o ex-presidente e atual senador, José Sarney (PMDB-AP), chama de "colégio dos cardeais" - um núcleo de nove ou dez senadores e deputados de vários partidos que de fato conduzem a instituição. Como se trata de um "colégio" sem existência material, cujos membros precisam ser identificados pela sabedoria política, os "cardeais" estão sempre à disposição do presidente da República.

São atores aptos a sugerir caminhos e soluções, e podem ser indispensáveis, nos momentos difíceis, para formar a convicção do chefe de Estado.

Lula nunca recorreu a esse grupo. No seu primeiro depoimento, Roberto Jefferson explicou que apenas revelou o escândalo do mensalão a Lula em janeiro deste ano porque o presidente não recebia os dirigentes e líderes dos partidos aliados.

Os interlocutores de Lula têm se restringido aos companheiros de partido e ministros amigos, como o da Fazenda, Antonio Palocci.

Numa longa entrevista exclusiva para o caderno Aliás, o senador Tasso Jereissati revelou que nunca teve uma conversa reservada com Lula. A seguir, os principais trechos da entrevista:

DEU METÁSTASE

A sensação que a gente tem, e que a meu ver é o mais grave, é que esta crise não é um escândalo isolado. Quando surge um escândalo, a gente concentra as investigações nele e apura até o fim. O que temos hoje é uma série de escândalos. Na expressão de um senador muito respeitado, "deu metástase" e a coisa se espalhou por vários órgãos do governo. A cada semana vão se confirmando denúncias de um novo escândalo, em um novo lugar, envolvendo quase sempre as mesmas pessoas. Isso dá a impressão de uma coisa coordenada por um núcleo central, dentro de uma perspectiva organizada de distribuição dos benefícios dessas ações. Seria uma coisa sistêmica a partir de um núcleo muito próximo do governo, vinda especialmente do PT e dos partidos aliados. É essa a gravidade da situação. Se fosse um escândalo nos Correios, uma situação pega em flagrante, extirpava-se o tumor e no fim do mês estaríamos com esse assunto encerrado. Mas não é. A sensação é a de que estamos apenas no começo e que todo esse processo ainda vai demorar muito tempo. Não acredito em crise institucional por uma razão muito simples: a oposição não quer, o país não quer, a sociedade, passando pela imprensa, também não deseja isso. Querem que nada fique impune, que nada fique sem esclarecimento. Propõem muito mais que a reforma política, mas uma reforma do Estado. Essa conjunção de fatores me faz ser até otimista: acredito que vamos sair profundamente depurados. CERCO PRESIDENCIAL Acho que o presidente foi cercado por um grupo muito próximo que dominou completamente os controles de todas as ações do governo. Esse grupo vinha de dentro do PT, com uma visão bolchevique de que o partido é mais importante do que o governo. Que esse núcleo centralizava e coordenava todas as ações, cada vez fica mais evidente. É um núcleo que precisa ser afastado e distanciado do governo.

A meu ver o presidente da República dedicou-se à tarefa de fazer um grande papel de relações-públicas, para dentro e para fora do País. Guiado por um grupo, levou o País a uma política externa catastrófica, tendo como pretexto a participação do Brasil no Conselho de Segurança da ONU, um objetivo que nós não vamos conseguir.

O desastre é este: a China nos deu um monumental fora, com a Argentina estamos em conflito, os Estados Unidos nos vêem com extrema desconfiança e nem recursos financeiros para participar da ONU o País tem. Estamos com dificuldades até para mandar recursos para sustentar nossas tropas no Haiti. Lula não assumiu as rédeas nem controlou o que estava acontecendo. Apesar de tudo, ainda acredito que o presidente é um homem íntegro e não sabia disso tudo.

TEMPO DE CAIR A FICHA

O presidente fez o discurso da mão estendida e depois dividiu o PMDB com um acordo do tipo fisiológico, que todos condenam. Revogou uma medida provisória numa intervenção do Executivo na pauta do Legislativo (o presidente Lula revogou na quinta-feira a MP 249, que criava a Timemania, por meio de uma edição extra de uma página do Diário Oficial). Isso aprofunda a crise. Ele ainda não entendeu o tamanho do problema em que está metido. Tenho a sensação de que ainda vai demorar até cair a ficha dele.

A gente percebe duas orientações no governo, ambas negativas. Uma é a posição infantil de querer contrapor a investigação de um escândalo recente com uma CPI para investigar coisas que teriam se passado no governo FHC. Ora, eles não estão em posição de ficar negociando de igual para igual o que vai se investigar ou não. A outra orientação é a do confronto, de levantar a bandeira contra uma suposta maquinação da direita e das elites no sentido de derrubar o líder operário. Essas duas atitudes acirram, agravam e prolongam a crise.

CORAGEM PARA "DESNOMEAR"

O presidente Lula terá de entender que seu governo está na berlinda, num momento de grande decepção nacional. Só ele pode fazer o grande gesto de resolver esta crise. Ninguém mais. Não está nas mãos da oposição. A mão estendida é um gesto muito forte. Ela significa um reconhecimento, através de ação, "de que erramos" e de que "o apronto político que fizemos do puro fisiologismo foi um erro monumental".

Lula terá de "desnomear" os que foram nomeados por critérios fisiológicos ou clientelistas, sejam de que partidos forem. Diminuir o número de ministérios e de cargos comissionados, que estão aí só para satisfazer a voracidade de alguns partidos, inclusive do próprio PT. Propor uma reforma política que seja indutora da minimização desses males. Aí Lula terá condições de estender a mão ao Congresso e dizer "olha, quero propor uma agenda mínima".

A cena que nós vimos recentemente do presidente no Palácio com algumas lideranças do PMDB foi deprimente. Faziam um acordo de troca de votos por cargos, e até usando expressões que a Nação toda está repelindo: agora ministérios são dados de "porteira fechada".

Meu Deus do céu, a que nível chegaram! O que é isso? Tinha de dar um zero, um basta nisso. É uma oportunidade que acho que o presidente tem para salvar sua biografia. Se não fizer isso, ele vai sair do governo com uma de duas marcas em cima de sua personalidade: a de conivente, na qual eu não acredito; ou a de bobo, que fez apenas o papel da rainha de uma Inglaterra pobre, presunçosa, sem recursos. ALÉM DO ESPELHO D¿ÁGUA

Há um limite para tudo. E esse limite não depende de nós. Queremos preservar o presidente e que ele refaça seu governo.

Acho que depende de novo apenas dele. As insatisfações coletivas não são controladas por ninguém. Tem um ponto em que se perde o controle completamente e a boa vontade passa a não significar nada, em que os fatos são mais fortes. O problema é que a gente só sabe qual é esse ponto depois. Então é melhor correr para se antecipar.

Espero que nesses dias ele faça uma reflexão.

Eu gostaria muito de derrotar Lula na eleição. Mas desejo também que ele se recomponha. É um desejo de todos: meu, do cidadão comum, da imprensa, dos políticos. Ele precisa saber usar essa boa vontade, mas, antes, é preciso que dê uma acordada total, pise no chão, olhe o que está acontecendo do outro lado do espelhinho d'água do Palácio da Alvorada.

AGENDA POSITIVA, COMO?

Estamos operando normalmente o Senado, votamos nomeações de embaixadores nesta semana, até emenda constitucional, mas não é disso que se trata. Não tem agenda positiva que mude o astral nacional e leve o governo a se impor como liderança.

O ambiente político está sombrio. A imprensa mal noticiou nesta semana o que seria primeira página em outra circunstância. Os agricultores que vieram se manifestar em Brasília estavam subindo a rampa do Congresso de trator, não entraram por pouco. Um clima gravíssimo. Pessoas que estavam perto entraram em pânico.

Discutir, a gente discute. Votar, a gente vota. Mas os valores estão sendo corroídos, é preciso resolver primeiro isso. Agora a área econômica fala em propor uma emenda constitucional para desvincular receitas orçamentárias e perseguir a meta de déficit nominal zero. Se for para servir de cortina de fumaça, não é possível. Não há confiança no governo para discutir com serenidade uma proposta dessas, que é bem-vinda, mas em outra circunstância.

A economia já não é brilhante e começa a ser contaminada. O governo prega uma falsa euforia. Estamos falando de 2% a 3% do PIB, com crescimento mundial de 4%. Ou seja, a distância do Brasil para o resto do mundo está aumentando. E isso sem a economia ser ainda atingida pela crise política, o que significa que o investimento vai parar, o emprego vai parar, significa um prejuízo gigantesco para o País.

AÉCIO E LULA, NO PLANALTO

Não foi um ato do partido (a ida de Aécio Neves ao Palácio do Planalto). Foi um ato de educação, polidez e civilidade política. O governador Aécio fez muito bem em ir. Conversar com o presidente da República ou com um de seus ministros não significa adesão a ele. Esse é o engano grave que o PT teve no passado. Não se pode confundir as coisas. Sempre aceitamos discutir em torno de idéias em que tínhamos afinidades.

Nunca se deve fechar o diálogo. Não é nosso estilo. Conversamos sempre com as lideranças petistas. Trocamos idéias com o ministro Palocci. Mas eu nunca tive uma conversa reservada com o presidente Lula. Estivemos juntos algumas vezes. Ele convidou-me uma vez para uma sessão de cinema com várias pessoas. O PROJETO DA REELEIÇÃO

Eu não votei em Lula. Mas sempre achei a vitória dele um passo importante para o Brasil. Mostramos ao mundo que somos capazes de conviver com a pluralidade política. O presidente é um nordestino pobre, um homem de esquerda, que chegou à Presidência da República em um clima de naturalidade e normalidade.

Outro grande passo foi a chegada do PT ao poder. O partido precisou trazer para o chão da realidade seu pressuposto maniqueísta de que havia um confronto entre os bons e os maus. Eles eram os bons, que iam dar aumento de salário e emprego a todo mundo, e os que estavam no poder não faziam isso porque eram os maus. As próximas eleições não serão mais a disputa do céu contra a terra, mas a da vida real.

Nesse contexto, acho que o projeto de reeleição já está bastante prejudicado. Penso que Lula ainda tem algumas possibilidades. Se ele quiser transformar em ação aquela mão estendida, acho que deveria esquecer esse projeto. O grande projeto dele, que pode até resultar numa reeleição, tem de ser reconstruir sua biografia.