Título: Água na fervura
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Fonte: O Estado de São Paulo, 25/06/2005, Notas e Informações, p. A3

Assim como o seu governo costuma fazer em relação a uma multiplicidade de problemas administrativos, o presidente Lula ¿ a julgar por suas manifestações públicas ¿ parece enfrentar a crise política nascida das denúncias de corrupção pelo método do ensaio e erro. Com isso transmite uma imagem de desnorteamento e perplexidade que por si só contribui para aumentar as inquietações sobre os desdobramentos da deplorável conjuntura atual. Se a oposição estivesse efetivamente interessada em atingir a jugular do Planalto, apenas o vaivém do presidente já lhe daria material para adensar as tensões da hora. Na sua primeira ¿ e tardia ¿ fala dedicada ao assunto, passadas mais de três semanas da divulgação da fita que indicava a existência de um esquema de cobrança de propina nos Correios, Lula fez o que se espera de um chefe de governo ciente de suas responsabilidades. ¿O que está em jogo¿, definiu impecavelmente, ¿é a respeitabilidade das nossas instituições, das quais sou o principal guardião.¿ Sete dias depois, retrocedeu à retórica fácil do ¿não deixaremos pedra sobre pedra¿. Ao mesmo tempo, os seus operadores no Congresso tratavam, em vão, de abater a pedradas a instalação da CPI que, também em vão, haviam tentado impedir que tivesse as necessárias assinaturas para ser instaurada.

Já no terceiro pronunciamento, na última terça-feira, deixou em segundo plano até as promessas de levar as investigações na esfera do governo às derradeiras conseqüências, para afirmar, desafiadoramente, que nenhum brasileiro tem mais autoridade ética do que ele, que o governo não pode ¿ficar correndo atrás de denúncia vazia¿ e que se fala por aí uma ¿quantidade de bobagens¿. No arremate, sugeriu que por trás das acusações estaria o medo dos adversários de que se reeleja. Um dia depois, derrapou de vez ¿ se não pelas palavras, por um ato.

Lula promoveu em palácio um arremedo de reunião de Gabinete com representantes das organizações que acorreram ao chamado do ex-ministro José Dirceu para defender o presidente do ¿golpe das elites¿ que estaria em marcha. Não se sabe ao certo o que o presidente lhes disse, mas dificilmente qualquer alocução seria mais eloqüente ¿ e ominosa ¿ do que a presença, bem ao seu lado, do carbonário líder do MST, João Pedro Stédile, inimigo juramentado da ordem democrática. Eis que no dia seguinte um Lula transfigurado se dirige ao País, em cadeia nacional de rádio e TV. Pondo água na fervura, garante que a investigação da Polícia Federal, ¿agora reforçada pela CPI¿ ¿ a mesma que dera ordens para abafar ¿, ¿saberá separar o joio do trigo, o bem do mal, a verdade da mentira¿.

Era o ¿Lulinha paz e amor¿ redivivo ¿ não tivesse ele mobilizado para afinar o tom do discurso o marqueteiro Duda Mendonça, cuja contribuição pode ser facilmente identificada em mais de uma passagem do texto lido pelo presidente. Em lugar de repetir, com estudada indiferença, que o ¿mensalão¿ era ¿um problema do Congresso¿, disse ter ¿certeza de que o Congresso Nacional saberá apurar todas as denúncias¿. E se dissociou por completo da delirante acusação inspirada por Dirceu de que também a mídia era golpista.

¿Feliz do país¿, entoou Lula, ¿que tem uma imprensa livre e democrática que tudo pode acompanhar, fiscalizar e investigar.¿ Será essa afinal a linha à qual se manterá fiel, depois de tantos ziguezagues? Seria um alívio acreditar que sim, mas a única certeza ao alcance da vista é que incentivos para tanto não lhe faltam.

O ex-presidente Fernando Henrique, em entrevista ao programa Conexão Roberto D'Ávila marcada para ir ao ar ontem à noite, disse que ele e o PSDB estão prontos a ajudar Lula a sair da crise. ¿Nós não queremos o `fora Lula¿¿, assegurou.

¿O País quer diálogo.¿ No Senado, oposição e governo concluíram de comum acordo que esta não é hora de pôr em andamento a CPI dos Bingos, autorizada pela Justiça. Na dos Correios, bem como nas sessões do Conselho de Ética e da Corregedoria da Câmara, a preocupação aparente de governistas e oposicionistas é a mesma: apurar os fatos. Por fim, ainda na Câmara, líderes de ambos os lados da divisa instaram o presidente da Casa a não permitir a exibição, ontem, de um vídeo ofensivo ao ex-deputado José Genoino.

É claro que a todo momento um fato novo pode piorar esse clima já de si volátil. Resta torcer, ao menos, para que não seja o presidente Lula o seu criador.