Título: É a política, estúpido!
Autor: Gilberto de Mello Kujawski
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/08/2005, Espaço Aberto, p. A2

Vamos e venhamos: os políticos são presos por ter cão e por não ter cão. Se permanecem à sombra, são acusados de omissos e inoperantes; se aparecem ostensivamente, como agora nas CPIs, não faltam acusações de que são todos uns exibidos detestáveis, que só querem fazer palanque, etc. Esta última leitura é superficial. O que vemos nas CPIs é a plena visibilidade emprestada a um grupo de homens públicos acostumados a trabalhar longe da vista do público, nas comissões, nas reuniões internas, etc., e que agora atuam à luz do dia, agitados, tensos, freqüentemente indignados, finalmente honrando o posto para o qual foram eleitos, e - o que parecia inverossímil - retomando a eloqüência que de há muito não se via nem se ouvia nas mornas e sonolentas sessões da Câmara e do Senado. O Legislativo recupera a palavra com força, em contraste com a falta total de discurso dos membros do governo e do PT, a começar por Lula, que perdeu as chaves de sua retórica, de resto, tão trivial: sua palavra não tem mais alcance, limitando-se a vociferar platitudes, como essa do complô das elites (as quais o elegeram como o queridinho da burguesia e agora pagam o preço).

Não nos vamos deter nos aspectos menores das CPIs, a verborragia de muitos inquisidores, a vontade de aparecer, de fazer palanque, etc. Política não é para anjos, nem consta que os anjos façam política. (Quando Lúcifer teve veleidades de poder, partiu logo para a ignorância e provocou uma rebelião desastrada, prova de que a política não era sua praia.) A política serve de respiradouro para a sociedade, que sem ela pode morrer sufocada. Ruim com a política, pior sem ela. O que não se deve perder de vista, o principal e o importante é o seguinte: a política estava na penumbra, eclipsada, já não tinha voz ativa; o jogo político no País estava travado pela pressão do partido hegemônico, que loteou o governo e exercia na base um troca-troca nefasto utilizando práticas muito pouco ortodoxas, culminando na farta distribuição de propinas, como se sabe agora, a troco de apoio no Congresso.

Há várias formas de acabar com a política. Nos regimes de força se aplica a repressão pura e simples. No caso do PT, reduziu-se a política à impotência ocupando os cargos-chave da administração e comprando, a peso de ouro, o apoio de outros partidos para garantir seu projeto de poder (não de país). O resultado foi desmoralizar a oposição, que perdeu a força porque podia ser comprada. Desativada a oposição, suprimiu-se a política. A hegemonia do PT, obtida por métodos ilegais e escusos, enfraqueceu a oposição e reduziu o exercício de fato da política a um jogo de fachada.

Pois bem, instalada a CPI dos Correios, teve início a revanche dos políticos. Estes assumem com garra o seu papel e tomam nas mãos as rédeas da situação. A política, até então absorta na letargia, desperta, solta a voz, mostra a que veio e o que significa na ordem das coisas: uma força social decisiva, lado a lado com outras forças que impelem a História para a frente, a economia, o direito, a moral, a cultura, a religião, etc. Assim como um dia alguém exclamou para explicar o que se passava "é a economia, estúpido!", agora cumpre gritar para quem estranha a efervescência nacional produzida pelas CPIs: "É a política, estúpido!" É a política que está de volta, é a oposição que, afinal, se recompõe como o outro pólo da disputa pelo poder.

As CPIs permitiram ver quem é quem no Congresso Nacional, desfazendo a injúria de que os políticos são todos farinha do mesmo saco. Levantando os ombros sobre a mediocridade do baixo clero se destacam figuras tutelares como o senador Jefferson Peres (PDT-AM). Em entrevista ao caderno Aliás (26/6), o veterano político destila sua experiência e sua sabedoria, esclarecendo, por exemplo, quando e como Lula errou: "Quando assumiu, poderia e deveria ter inovado esse relacionamento (com o Congresso), aproveitando que estava sob a auréola da unção popular. A expectativa era imensa em relação às mudanças que faria, mudanças de todo tipo. Lula tinha todas as condições para se impor moralmente no Congresso. O baixo clero teria ficado acuado. Era tão grande o apoio popular do presidente, no início do mandato, que ele falaria com toda a autoridade, ainda que contando com uma base menor. Mas uma base mais coesa, mais sólida. O problema foi esse. O governo e o PT se nivelaram por baixo."

Outras figuras sólidas e de insuspeita respeitabilidade se levantam, como a deputada Denise Frossard (PPS-RJ), sempre perspicaz, nítida e precisa em suas posições. A senadora Heloísa Helena (PSOL-AL), apesar da estridência vocal em altos decibéis, merece todo o respeito.

Lembre-se, ainda, o velho guerreiro senador Pedro Simon (PMDB-RS), o senador Saturnino Braga (PT-RJ), o deputado Gustavo Fruet (PSDB-PR), o senador Álvaro Dias (PMDB-PR), insinuante, tarimbado, o senador Suplicy (PT-SP), o deputado Eduardo Paes (PSDB-RJ). Na ala jovem, ACM Neto (PFL-BA), objetivo, implacável, raciocínio surpreendentemente bem organizado. Sem falar na dignidade do senador Delcídio Amaral e do deputado Osmar Serraglio.

Critica-se muito a chamada política-espetáculo, mas desde quando a política não se apresenta como espetáculo? Em Roma, talvez? Nas cortes suntuosas do Antigo Regime, por acaso? Na Revolução Francesa? Não há política sem teatro e sem retórica e, onde estas faltam, o que falta é a política.

"Refundação do PT"? É pouco, os petistas continuam mirando o seu umbigo como se fosse o centro do mundo. O que se trata, isso sim, é da refundação da Política, do saneamento das relações entre governo e oposição, como ponto de partida de uma solução menos traumática, a exemplo da "saída à chilena" proposta por Jefferson Peres, o pacto de governabilidade acertado entre os grandes partidos, PT, PSDB, PFL e PMDB, com exclusão do impeachment.