Título: As veias abertas da Quinta República
Autor: José de Souza Martins
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/08/2005, Nacional, p. A7

Contra o eventual pedido de impedimento do presidente Luiz Inácio, o atual presidente do PT anuncia que os movimentos sociais serão convocados para defender-lhe o mandato. Justamente aí está um dos aspectos mais problemáticos da história do Partido dos Trabalhadores: a cooptação dos movimentos sociais, como se constituíssem o departamento de agitação social do partido, chamados às ruas por decisão administrativa. Se não tivesse havido essa cooptação, provavelmente o partido não teria chegado ao beco sem saída em que se encontra e o País não estaria mergulhado na angústia da incerteza que o sufoca. Os movimentos sociais teriam se manifestado há muito, com independência e vigor, contra formas de conduta política que se tornavam evidentes na arrogância, na indisposição para o debate aberto e democrático, no corporativismo que cega, na atitude refratária e não raro inquisitorial em relação ao pensamento crítico. Se alguém quisesse se tornar uma figura pública consagrada bastava entrar para o PT e era imediatamente beatificado, até mesmo com água benta. Na própria universidade, não raro ser petista passou a ser proposto e defendido como sinônimo de competência, discernimento, brilho e virtude acadêmica. Como se os cautos, prudentes e críticos fossem desprovidos dessas qualidades. Vozes discordantes têm sido caladas, intimidadas ou ignoradas pela onda vermelha do indiscutível. Nomes de acadêmicos reputados, vivos ou mortos, têm sido usados para acobertar deficiências e problemas que os espíritos lúcidos e independentes enxergam e analisam.

Intelectuais foram freqüentemente chamados a montar uma verdadeira fábrica de racionalizações ad-hoc para amenizar os defeitos do partido e agravar os defeitos dos adversários, especialmente os mais próximos, os da esquerda não-alinhada aos propósitos corporativos, estreitos e intolerantes. Tudo que o PT faz passou a ter justificativa, mesmo as coisas mais injustificáveis. O que era feio no adversário passou a ser bonito no PT. Criou-se a base da cultura da culpa e do culpar.

O adversário passou a ser o culpado por tudo. Pode-se sentir aí o cheiro de enxofre e o calor não muito longínquo das fogueiras da Santa Inquisição. A satanização dos discordantes e dos críticos tornou-se a técnica mais freqüente para fechar bocas e encerrar assuntos. O próprio PT substituiu a luz do conhecimento por incerta luminosidade de lamparina.

A convocação dos movimentos sociais, para supostamente defender o presidente, muda a agenda desses movimentos, que estavam planejando manifestação contra a corrupção. Esse é um sinal de que os movimentos sociais já não existem a não ser como associações de interesses partidários. Foram enrijecidos pelo aparelhismo e imobilizados na função de acólitos do partido reinante. Aliás, a orientação de fazer tudo que seu mestre mandar não começou com Lula na presidência.

Os petistas mais abatidos pelas revelações destas semanas acham que seu partido já acabou. Seria uma lástima se isso acontecesse, por tudo que o PT representa na democracia brasileira. O País ficaria politicamente pobre e politicamente frágil. O PT nasceu, é bom que se diga, como um partido diferente das nossas tradições partidárias, tendentes ao fisiologismo. Não é estranho que tivesse tentado incorporar ao seu ideário as demandas mais significativas dos movimentos sociais que foram a forma característica de ação da nossa incipiente sociedade civil a partir dos tempos difíceis da ditadura.

Foi a primeira vez que um partido fez isso no Brasil. Mas os organizadores do PT, incluindo os seus intelectuais, cometeram o erro de não reconhecer que essa fonte nutriente da energia do partido trazia também uma proposta de termos enfim neste País um partido da diversidade social, que fosse por excelência o oposto de tudo que já conhecíamos na política, um moderno partido das diferenças e dos diferentes. Porque o mundo, e o Brasil também, há muito não é mais a prosaica polarização de proletários e burgueses, de povo e elite, marcado que é hoje por ampla diferenciação social. Em vez disso, o partido assumiu uma estrutura autoritária e centralizadora. Adotou um falso discurso proletário em vez de construir um discurso e uma doutrina da diferença, base de sua origem e substância de sua existência.

A traição começou aí. Se é que houve traição, pois os movimentos sociais aceitaram com alegria o engessamento ideológico, gostaram da sua conversão em organizações burocráticas de ação partidária, a figura do agitador social convertida em funcionário remunerado.

Os movimentos sociais só têm sentido como expressões da vitalidade política da sociedade. A pluralidade de causas que se manifestaram nesses movimentos definiu o perfil de um novo sujeito político num país em que a sociedade civil sempre fora pequena e limitada. O PT contribuiu poderosamente para matar esse novo sujeito. Adotou a técnica de cooptar as formas organizadas de expressão social para alimentar, apenas e unicamente, a engrenagem de seu projeto de poder com a energia da sociedade civil. Os outros partidos de esquerda, social-democratas, socialistas e trabalhistas têm sua dose de responsabilidade nessa história melancólica. Ignoraram e até desdenharam os movimentos sociais, aquilo que poderia em diferentes momentos ter servido de termômetro de crises e fonte de renovação política. Nossas esquerdas, incluindo o PT, sempre foram elite e elitistas, nunca tiveram de fato grande apreço pela idéia da emergência no povo no cenário político, só quando lhes interessou. A Quinta República entrou em agonia não só com o desdém pelos movimentos sociais, mas com seu aparelhamento. E isso já começara a ocorrer no início dos anos noventa. O moribundo pede agora um milagre. E isso depende de que Lula se converta finalmente num estadista capaz de unir o País em nome da superação da crise de que é o principal protagonista e não em nome do barato populismo da campanha precoce por um segundo mandato.