Título: Sem milagres
Autor: Denis Lerrer Rosenfield
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/08/2005, Espaço Aberto, p. A2

Os políticos brasileiros têm uma estranha propensão para grandes soluções quando o Brasil enfrenta uma crise inusitada. Em situações normais, reformas são feitas gradualmente e, em alguns casos, estão aquém dos problemas colocados. O governo anterior e o atual usaram, em várias circunstâncias, o mecanismo de emendas constitucionais para alterar artigos da Constituição. Um processo desse tipo se deu sem traumas, obedecendo a trâmites legais, em que as disputas políticas foram plenamente exercidas. O País avançou dentro de parâmetros de amadurecimento político que resultaram, inclusive, na eleição de Lula, um ferrenho opositor. O País fez uma experiência decisiva de alternância de poder num regime democrático plenamente consolidado. A crise atual do governo e de seu partido mostrou uma forma de corrupção baseada na identificação entre partido e Estado. Na medida em que as distinções entre ambos se apagaram, o caminho foi aberto para que uma nova forma de corrupção, voltada para o fortalecimento do projeto de poder do PT, pudesse encontrar seu livre curso. As justificativas apresentadas, inclusive pelo presidente da República, de que o seu partido fez o que todos os outros sempre fizeram, são claramente parciais. Primeiro, porque não há provas contra todos os partidos. Segundo, o PT foi eleito para mudar precisamente essas práticas e tinha, para tal, se comprometido eleitoralmente. Terceiro, a novidade dessa corrupção reside em seu menosprezo pelo Estado de Direito, pela democracia representativa, via compra de deputados. Quarto, o enfraquecimento daí decorrente da democracia seria condição para que um projeto de corte socialista, no dizer da maior parte das tendências do PT, encontrasse o seu próprio caminho.

Logo, querer atribuir o que está acontecendo à estrutura do Estado brasileiro, sobretudo às suas práticas patrimonialistas e ao seu tipo de sistema partidário-eleitoral, é uma simplificação do problema. O patrimonialismo não foi a causa do colapso ético do PT, mas simplesmente uma base onde o projeto de poder desse partido se pôde desenvolver. A raiz do problema reside na concepção leninista de que os fins justificam os meios e que tudo deveria ser feito para fortalecer um partido redentor da sociedade brasileira. No que concerne ao sistema partidário-eleitoral, nenhuma reforma política foi empreendida no atual governo porque não lhe convinha, pois até a crise tudo transcorria no melhor dos mundos possíveis para o governo Lula, para o PT e para setores de sua base aliada.

Em conseqüência, o problema maior não residiria numa profunda reforma política, nem numa Assembléia Constituinte que faria as reformas mais importantes. Temo por grandes soluções que terminam criando a falsa ilusão de que teremos um equacionamento de todos os problemas. Qualquer das reformas propostas pode ser feita pelos meios constitucionais em vigor. Pequenos passos bem dados podem ter efeitos muito mais duradouros do que grandes iniciativas polêmicas.

Uma reforma política que mudaria completamente os hábitos políticos brasileiros é um caminho para o desconhecido, pois não há aqui um princípio que seja válido para todos os países. É o caso da passagem das listas abertas para as listas partidárias fechadas. Cada país termina por encontrar o sistema mais adequado para as suas instituições e seus costumes. Tempos de crise são os menos adequados para grandes transformações. Uma boa idéia pode assim se perder. No entanto, algumas medidas consensuais, diria até de bom senso, poderiam ser tomadas de modo a aperfeiçoar o sistema vigente, passando a vigorar para as próximas eleições:

Estabelecimento da fidelidade partidária;

seguindo a proposta do ministro Carlos Velloso em entrevista ao Estado (14/8) e retomada por este mesmo jornal em editorial de 15/8, elevar a pena mínima de prisão para delitos eleitorais de 1 para 3 anos, acompanhada de uma maior fiscalização;

descontar as doações da declaração do Imposto de Renda, numa outra proposta do mesmo ministro, em coeficiente a ser determinado, o que obrigaria à transparência e incentivaria os doadores a seguirem essa via;

o tamanho das bancadas seria determinado pela votação obtida por cada partido, com todas as conseqüências daí derivadas no que diz respeito às escolhas dos presidentes do Senado e da Câmara, das comissões, etc.;

obrigar o debate eleitoral entre os candidatos, diminuindo o papel dos marqueteiros, de forma que os eleitores possam escolher entre programas e idoneidade dos candidatos, e não comprar produtos enlatados;

adotar a proposta do senador Jorge Bornhausen que proíbe showmícios, a contratação de artistas e reduz o tempo de campanha eleitoral.

Por último, a grande mudança já foi feita e ela é a mudança de mentalidades, propiciada, paradoxalmente, pelo atual governo. Antes de o PT chegar ao poder, esteve presente no cenário nacional uma proposta salvacionista, redentora, que seguia a velha idéia de que, dali em diante, tudo seria diferente. O reino de Deus seria possível na Terra: a vontade política imperaria. A partir do momento em que a única política bem-sucedida do governo Lula é a econômica, e sendo esta um prolongamento da política do governo Fernando Henrique, o que ele tem de próprio é a sua inoperância e a sua completa ausência de critérios morais.

Toda uma experiência está sendo feita. E essa experiência é fundamental para que a opinião pública brasileira veja com outros olhos o fracasso de um projeto de poder voltado para o fortalecimento de um partido. Algo, sim, mudou neste país, e é o fato de termos feito a experiência de um governo petista no nível federal. Nada será como antes. Uma "grande reforma" já foi feita. Precisamos apenas tirar dela as conseqüências.