Título: O que não é espelho
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/08/2005, Nacional, p. A6

Todos os elogios que se fizeram à fala do ministro da Fazenda, domingo, são pertinentes. Antonio Palocci, de fato, foi objetivo, elegante na forma - inclusive gramatical -, respeitoso, esteve à altura da crise em sua entrevista coletiva, a começar pelo formato escolhido. Algo absolutamente normal e natural caso não vivêssemos um momento peculiar da democracia, em que autoridades públicas tomam o imperativo de prestar contas à Nação como um sinal de fraqueza. Quando envolvidas em denúncias, invertem o ônus da responsabilidade à oposição e, no limite, à sociedade, cujo dever, por essa ótica, deve ser o de amenizar para não complicar.

Palocci fez apenas o que se espera de uma autoridade diante de uma acusação envolvendo o patrimônio público: deu sua versão sem derivar para fantasias, insultos nem jactâncias e, sobretudo, mostrou consciência de que o governo está em dívida para com o País, e não ao contrário, como parece raciocinar o presidente da República quando reage no diapasão da ofensa pessoal.

Todo mundo notou, mas não custa ressaltar ainda uma vez, que se houvesse nesse governo meia dúzia de personagens com a mente em dia, como Antonio Palocci, o ambiente da crise seria outro. Não no tocante ao conteúdo das denúncias, desobedientes a fidalguias que são, mas em relação à capacidade de gerenciamento para organizar as forças sociais e políticas na travessia da adversidade.

As negativas do ministro, é evidente, nem de longe reduzem a gravidade dos fatos, como de resto não encerram o assunto abordado por Rogério Buratti que, a despeito de todo açodamento dos procuradores de São Paulo, está em consonância com a realidade agora em processo de esclarecimento no âmbito federal e com as investigações há tempos em curso no Ministério Público sobre a sistemática de pedágio pago por prestadoras de serviços públicos aos cofres do PT.

Se Buratti mentiu ao envolver o ministro no caso ou se o ministro foi quem se entregou ao exercício do logro ao negar, ver-se-á adiante no desenrolar das investigações. Estas, nessa altura, já independem de vontades ou de truques para se desmoralizar este ou aquele investigador.

Palocci demonstrou exatamente essa consciência ao expor sua opinião contrária à forma de atuação dos procuradores sem recorrer ao instituto da desqualificação do Ministério Público nem se fazer de vítima de intenções ocultas, preconceitos, conspirações e tolices semelhantes.

Apresentou seus argumentos, expôs sua posição, declarou-se disposto e preparado para enfrentar as coisas como elas são, e resumiu isso numa frase: "Não temo o porvir nem o que está colocado." Um homem público diante de suas circunstâncias, sejam quais forem elas. Na atual conjuntura, uma raridade.

Óbvio, mas inevitável, o registro do contraponto entre a reação de Antonio Palocci e as ações do presidente Luiz Inácio da Silva. Alivia saber que o presidente, como disse ontem em seu programa de rádio, aprovou com entusiasmo a fala do ministro.

Aflige, porém, ouvir dele a frase: "Acho que o Palocci deu a resposta que o Brasil precisava ouvir." Ora, era do presidente da República que o País estava esperando uma resposta condizente. Não veio até agora e, mais grave, no mesmo programa Lula não deu mostras de aptidão para seguir o exemplo.

Teve ali nova oportunidade - aliás, tem toda do mundo o tempo inteiro -, mas dispensou: "Nós vamos tocar o barco", disse, sem indicar para onde.

Não sendo ao fundo do mar já será um alento.

Intransferível

José Dirceu defendeu-se ao Conselho de Ética argumentando que não era deputado à época das acusações. Era sim, licenciado da função, mas não da delegação popular conferida por 600 mil eleitores em 2002.

Secessão

A direção do PMDB, Michel Temer, Geddel Vieira Lima, Eliseu Padilha e Moreira Franco à frente, decidiu formalizar o racha do partido dentro do Congresso. A este movimento, surgido na Câmara, juntam-se os oito senadores que, conforme anunciou o senador Mão Santa ontem, formarão um grupo independente da orientação governista até então preponderante na bancada do PMDB do Senado, sob a liderança de José Sarney e Renan Calheiros.

A idéia é transpor para o Parlamento uma realidade já existente no partido, cuja convenção nacional de dezembro último aprovou o abandono dos cargos federais (decisão ignorada) e a candidatura própria à Presidência da República em 2006.

Na Câmara, os deputados, além de não seguir a liderança formal, contestarão permanentemente a legitimidade do líder Wilson Santiago, indicado pelo antecessor, José Borba, integrante da lista dos candidatos a perderem o mandato por negociarem apoio em troca de dinheiro.

No Senado, o grupo recuperou a denominação de "autênticos" que identificava a, digamos, esquerda ética do MDB. Na Câmara, há certo constrangimento em adotar o nome para não dar margem a ironias.