Título: Vitória da imprensa
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Fonte: O Estado de São Paulo, 02/09/2005, Notas e Informações, p. A3

Ao julgar o pedido de abertura de uma ação penal contra um colunista, um editor e o presidente do Conselho de Administração da revista Veja, que no dia 3 de agosto publicou uma edição com vários artigos e matérias contundentemente contrárias ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o relator do caso no Supremo Tribunal Federal (STF), ministro José Celso de Mello Filho, exarou uma sentença exemplar. A ação foi impetrada por um advogado que, descontente com o conteúdo das reportagens e artigos, acusou seus autores de colocarem em perigo o regime democrático e pediu sua condenação e a de seus superiores hierárquicos por crime de subversão contra a segurança nacional.

Apesar da gravidade da acusação, que é flagrantemente desproporcional ao teor das críticas dirigidas pela revista a Lula, Mello Filho determinou o arquivamento da ação por razões processuais, alegando que ela deveria ter sido impetrada na primeira instância da Justiça Federal, e não diretamente no STF. Mas, como o caso poderia abrir um perigoso precedente contra a liberdade de imprensa e o direito de crítica, o ministro julgou oportuno entrar no mérito da discussão, apresentando argumentos que, a partir de agora, servirão de parâmetro para o Supremo no julgamento de novas ações criminais contra jornalistas.

No regime democrático, afirmou o ministro, os jornais, as revistas, as rádios e as televisões têm o direito não apenas de informar e opinar, mas também de formular críticas, por mais veementes e sarcásticas que sejam, a todos aqueles que tiverem "alto grau de responsabilidade na condução dos negócios do Estado".

As eventuais suscetibilidades dos detentores do poder e de seus simpatizantes, disse ele, em hipótese alguma podem se sobrepor nem aos interesses maiores da sociedade nem às liberdades públicas asseguradas pela Constituição de 88.

Em outras palavras, opiniões, críticas e ironias fazem parte do jogo político e da própria natureza das atividades jornalísticas, motivo pelo qual não configuram qualquer ameaça à segurança nacional. "No contexto de uma sociedade fundada em bases democráticas, mostra-se intolerável a repressão penal ao pensamento, ainda mais quando a crítica - por mais dura que seja - revela-se inspirada pelo interesse público (...). É preciso advertir, notadamente quando se busca promover a repressão penal à crítica jornalística, que o Estado não dispõe de poder algum sobre a palavra, sobre as idéias e sobre as convicções manifestadas pelos profissionais dos meios de comunicação social", explica Mello Filho.

Sua conclusão, amplamente embasada na jurisprudência firmada pela Suprema Corte dos Estados Unidos e por tribunais superiores europeus nessa matéria, é primorosa. "Nenhuma autoridade pode prescrever o que será ortodoxo em política, ou em outras questões que envolvam temas de natureza filosófica, ideológica ou confessional, nem estabelecer padrões de conduta cuja observância implique restrição aos meios de divulgação do pensamento (...). O direito de pensar, falar e escrever livremente, sem censura, sem restrições ou sem interferência governamental, representa (...) o mais precioso privilégio dos cidadãos."

Evidentemente, a decisão do Supremo sobre este caso não significa que o direito de crítica seja ilimitado nem que presidentes da República e qualquer governante ou homem público não tenham instrumentos jurídicos para se defender de falsas acusações veiculadas por órgãos de comunicação. Ao consagrar o direito de opinião e de crítica, a democracia também proporciona recursos legais contra abusos cometidos por jornalistas. É para isso que existem as ações cíveis por dano moral e as ações penais por crime de injúria, calúnia e difamação, previstas pela própria Lei de Imprensa.

O mérito da sentença de Mello Filho foi atalhar uma forma de pressão que visa a constranger a imprensa neste momento em que desempenha um papel decisivo na apuração da verdade sobre a extensão e a profundidade da corrupção no PT e no governo. Com sua incisiva sentença, o ministro preservou o regime democrático, que tem na liberdade de opinião e no direito de crítica dois de seus principais pilares.