Título: Nas ruas e nas águas, corpos
Autor: Paulo Sotero
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/09/2005, Internacional, p. A12

NEW ORLEANS - Sete dias depois da passagem do Katrina, corpos de mortos do furacão e da inundação que se seguiu continuavam boiando ontem pela manhã nas águas fétidas que tomaram Orleans East. Os cadáveres em decomposição de três refugiados que morreram durante a tardia e desastrosa operação improvisada para salvá-los estavam à vista na Rodovia 90.

Na rua diante do centro de convenções de New Orleans, jazia na tarde do sábado o cadáver de um jovem 16 anos, coberto por um pano preto, marcado por cadeiras e uma mancha de sangue que escorrera até a sarjeta. Uma parente do rapaz, Africa Brumfield, disse que ele foi atropelado por um carro da polícia de New Orleans quando atravessava a rua, na noite de sexta-feira. Segundo uma outra testemunha, que não quis se identificar, o jovem teria sido morto com um tiro na cabeça disparado por um policial, depois do incidente.

Não se sabe quantas pessoas morreram em New Orleans e levará tempo para saber. Há corpos dentro das milhares de casas nos bairros populares do norte e leste da cidade, os mais afetados pela devastadora inundação provocada pelo rompimento do diques que separavam essas áreas do lago Pontchartrain.

Segundo versões diferentes que circulavam entre policiais, haveria 300 mortos num necrotério provisório montado numa escola pública em Chalmette. Elas teriam teriam perecido quando o prédio em que se refugiaram desabou sob pressão das águas. Uma rádio da cidade informou ontem que "as estimativas oficiais vão de mil a dois mil, mas pode ser mais." As autoridades locais confirmaram até agora 59 mortes.

A senadora Mary Landrieu, democrata de Louisiana, previu que "o número será chocante".

Um policial que filmava um corpo boiando do alto da Rodovia 90, sábado, disse ao Estado que "a ordem, quando encontramos um corpo na água, é amarrar um peso e marcar o lugar".

Passada uma semana desde o início da catástrofe, a ordem de deixar os mortos para depois e cuidar dos vivos, que fazia sentido nos primeiros dias, era ontem mais uma ilustração da incompetência da operação.

Sem um comando central para responder à tragédia e desatentas ou indiferentes aos óbvios riscos para a saúde pública causados pela decomposição dos corpos sob temperaturas de mais de 30 graus, as autoridades começaram a receber a ajuda, no fim de semana, de centenas de equipes de bombeiros e paramédicos vindas de várias cidades da Califórnia e de outros estados distantes.

Mas uma simples providência como encontrar um caminhão frigorífico numa cidade próxima para remover os corpos mais facilmente resgatáveis, sugerida por programas de rádio, não parecia ter entrado ainda nos planos.

Segundo os soldados que assumiram o controle da retirada dos refugiados no Superdome, na sexta-feira, cerca de uma centena de corpos permaneciam num necrotério improvisado no estádio. O lugar, que exalava cheiro de excremento humano mesmo à distância, foi fechado do sábado. Os últimos 2 mil refugiados foram transferidos para o lado de fora e as vias de acesso ao lugar, à espera dos ônibus que os levariam para novos abrigos temporários no Texas.

Entre as centenas que permaneciam no centro de convenções, no sábado, à espera do resgate, vários disseram que havia havia mais de 20 corpos armazenados numa das cozinhas do grande edifício. "Meninas foram estupradas e tiveram depois as gargantas cortadas", disse Keyada Knowten, de 33 anos, que buscou abrigo no lugar no domingo, antes do furacão, com sua filha, Hanna, de 4 anos, seguindo as instruções das autoridades.

"Havia policiais do lado de fora, mas eles não deram nenhuma segurança contras as gangues que tomaram o controle lá dentro", contou, descrevendo o mundo de horror no qual esperou durante uma semana por socorro, junto com mais de 20 mil pessoas sedentas e famintas até a chegada da Guarda Nacional, no sábado. "As mulheres só podiam ir ao banheiro acompanhada por homens, e continuou assim mesmo depois que tivemos que passar a fazer as necessidades pelos cantos, porque o banheiro ficou impossível."

Um tensa vistoria de vários lugares do Centro de Convenções em busca dos corpos, feita por três soldados da Polícia Militar de uma unidade de uma unidade do Exército de Alexandria, Louisiana, e acompanhada pelo Estado, não revelou nenhum morto.

O número de mortes entre o refugiados certamente continuará a aumentar. Numa outra evidência da ausência de coordenação ou de simples senso comum na retirada das vítimas, havia dezenas de idosos e doentes entre os últimas pessoas a serem resgatadas no Centro de Convenções.

Angustiados com a demora da chegada de socorro para essas pessoas, que mal podiam mover-se depois de passar dias sem comida, sem remédio e sem o mínimo de condições, os soldados da Guarda Nacional de Louisiana colocaram várias delas num caminhão de transporte de tropas, com planos de levá-las até um dos hospitais de campanha que começaram a ser instalados na área a partir de sexta-feira.

Na Rodovia 90, sob sol a pino, os soldados faziam o que podiam para dar algum conforto a seis mulheres idosas visivelmente doentes na traseira de uma pequena carreta, antes de transferi-las para helicópteros. José Danilo Garcia, um imigrante de Honduras, de 43 anos, há 24 nos EUA, esperou horas para ser resgatado pelo ar. Pálido e suando, ele estava com forte dor no peito e tinha dificuldade para respirar quando os soldados o colocaram numa cadeira de roda para levá-lo até um helicóptero.