Título: Futuro incerto
Autor: Jarbas Passarinho
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/10/2005, Espaço Aberto, p. A2

O PT, até 2002, era um autêntico partido dirigido com mão de ferro por Lula, embora constituído por facções de matizes diversos da esquerda universal, os intelectuais entre eles, os que Aron descreveu como fumadores do "ópio dos intelectuais, impiedosos com os defeitos da democracia e indulgentes com os grandes crimes desde que cometidos em nome das palavras sagradas: esquerda, revolução e proletariado". Pensavam apropriar-se dos votos da massa que lhes é estranha, servindo-se do reformador do sindicalismo brasileiro que passa por heróico lutador contra a ditadura, e não fez mais que introduzir a desobediência civil no plano das relações de trabalho. Recusou pública e arrogantemente respeitar decisão do Tribunal Regional do Trabalho e ganhou fama ao desrespeitar a lei de greve de junho de 1964, relatada pelo deputado Ulysses Guimarães. A prisão pelo desafio à lei o fez o maior líder da história do sindicalismo. Mas já não existia o AI-5 e estavam asseguradas as liberdades políticas, civis e da imprensa desde a Emenda Constitucional nº 11, de outubro de 1977. O ciclo militar agonizava pacificamente, confirmando a História, que distingue o totalitarismo do autoritarismo. Daquele só se sai dramaticamente, vencido por forças extrínsecas - como se deu com o nazismo - ou por vetores intrínsecos, que levaram ao colapso do socialismo real. Em suas memórias, Gorbachev escreve sobre a URSS, que presidiu: "Um país empenhado no curso esgotante de armamentos, o nível de vida constantemente reduzido, os mecanismos econômicos funcionando cada vez pior, cientificamente capaz de mandar com precisão uma sonda a Vênus, ao mesmo tempo que não era capaz de levar água ao terceiro andar de um edifício."

Lula fundou e dirigiu o PT segundo o princípio do "centralismo democrático", inventado por Lenin, segundo o qual a cúpula decide e as bases obedecem incondicionalmente. Expulsou petistas que votaram em Tancredo no Colégio Eleitoral, escarmentando os rebeldes. O mesmo fez com os quatro que se recusaram a votar a contribuição de 11% dos aposentados, fazendo da Constituição um trapo ao violar direitos assegurados. Diante da enxurrada de corrupção do PT, sem igual na História da República, petistas houve que se revoltaram e ignoraram o "centralismo democrático". Pretenderam, supostamente apoiados pelo presidente Lula, refundar o PT, dele expurgando os que enxovalharam o galardão da pretensa ética. Logo esbarraram em José Dirceu, cuja liderança se mostrou indiscutível no Campo Majoritário, esse mesmo que elegera um tesoureiro e um secretário-geral que sujaram definitivamente a reputação do PT. Tudo indica que devido a instruções de Dirceu, visando a fortalecer o partido e mantê-lo por décadas no poder. Carlos Prestes, nos idos de 1963, homenageado pelo governador Miguel Arraes, disse: "Nós, comunistas, estamos no governo, mas não ainda no poder." Frase repetida por Frei Beto quanto ao poder, antes de deixar o governo Lula, decepcionado.

A sede de conquistar o poder foi, porém, insaciável. Assaltaram o Estado. Dirceu manteve sua candidatura e levou Tarso Genro a não disputar as eleições. O Campo Majoritário manteve a dianteira no primeiro turno, apelando para fraudes. Sua conduta lembrou o velho PSD da era Benedito Valadares: "Em eleição só é vergonhoso perder." Praticou-se o "vale-tudo". Um dos fundadores do PT, o cristão Plínio de Arruda Sampaio, em artigo para a Folha de S.Paulo escreveu: "O resultado (da eleição do primeiro turno) foi desanimador em vários Estados. Houve transporte em massa de eleitores e quitação de contribuições atrasadas, requisito indispensável para votar, pelos cabos eleitorais do candidato da situação e de dois candidatos que se proclamavam de oposição. O peso de eleitores de cabresto, no melhor estilo da política de clientela, que votaram sem saber em quem, foi decisivo para o resultado das eleições." E concluiu, desolado: "No PT, a minoria está reduzida à inglória tarefa de legitimar as decisões da cúpula." Ou seja, volta-se ao "centralismo democrático".

A mesma política de clientela prosperou na eleição para a presidência da Câmara dos Deputados. A manchete de primeira página do Estado a retrata: Governo abre o cofre e elege Aldo com 15 votos. O cofre - diga-se - sangrou em bilhões de reais e até o Ministério da Educação foi oferecido ao putrefato PP. Por coincidência ilustrativa, 15 são os indiciados nas CPIs para cassação dos seus mandatos, Dirceu entre eles. O novo presidente da Câmara é tido como respeitável, mas não tanto como imparcial. Testemunha de defesa de Dirceu, que exultou com a eleição, tanto quanto o indiciado deputado Janene. Homem grato e de atitudes firmes, Aldo Rebelo não abandonará Dirceu e, mais importante, barrará qualquer tentativa de impeachment de Lula e ressuscitará a possibilidade da reeleição.

Por outro lado, o resultado do segundo turno trará uma incerteza para o governo. Os desafiantes, se vencerem (o que é impensável), exigirão a mudança da política econômica, apelidada de neoliberal. O candidato oficial, Berzoini, tem-se declarado contrário à política do ministro Palocci, de quem o secretário do Tesouro norte-americano disse ser "a voz da razão da economia global". Tanto pode servir para epitáfio como para legenda de consagração. O futuro depende de Lula, que já repetiu ser imutável a economia enquanto for governante. Mas ele já disse tantas coisas e fez o contrário que o futuro da economia pode ser incerto.