Título: A isca nuclear
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Fonte: O Estado de São Paulo, 18/10/2005, Notas e Informações, p. A3

Com a afoiteza que é sua marca registrada, o presidente Hugo Chávez anunciou, durante a conferência de cúpula ibero-americana, que Venezuela, Brasil e Argentina estavam negociando um acordo de cooperação na área nuclear. Horas depois, o assessor para assuntos internacionais da Presidência da República, Marco Aurélio Garcia, confirmou a informação dada por Chávez: "Há uma iniciativa da Venezuela no compartilhamento de projetos comuns na área nuclear. Não vejo problemas porque os programas dos três países são transparentes, pacíficos e protegidos de qualquer derivação militar." Ontem, o chanceler Celso Amorim botou água na fervura: "Não existe acordo, ainda. Há apenas uma idéia (...) É um tema a ser examinado quando vier uma proposta concreta. Mas, no momento, é apenas uma idéia."

O presidente Hugo Chávez aproveitou a reunião de Salamanca para criar um factóide - o que vem fazendo desde que decidiu aparecer diante da opinião pública como o líder político da América do Sul. E como Chávez constatou que, em sua área de influência, ganha prestígio quem desafia os EUA, mais uma vez foi isso o que tentou fazer, "criando" fatos numa área tão sensível como a da proliferação nuclear. Lamentavelmente, o assessor internacional do presidente Lula engoliu a isca e o anzol, passando recibo para algo que não existia. Pior que isso, avalizou as intenções "pacíficas" e a "transparência" do inexistente programa nuclear venezuelano.

Há dias, a Venezuela foi o único dos 35 membros da Junta de Governadores da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) a votar contra a resolução exigindo que o Irã interrompa seu programa de enriquecimento de urânio, em vista das suspeitas de que a atividade esteja sendo desviada para fins militares. Na ocasião, o delegado venezuelano anunciou que seu país começava a fazer pesquisas sobre o uso pacífico do átomo. Em março, quando já ia adiantada a polêmica sobre a destinação do urânio enriquecido no Irã, a Venezuela assinou com aquele país um protocolo de cooperação nuclear. Em maio, Chávez lançou a idéia de um acordo com o Brasil e a Argentina, mais o Irã. Como a provocação aos EUA era flagrante, o chanceler Celso Amorim matou a idéia, afirmando que o Brasil não estava disposto a estender a cooperação nuclear a outros países.

Finalmente, há duas semanas, Chávez fez uma proposta de compra de um reator nuclear de projeto e fabricação argentina. Esperava, com isso, provocar uma irada reação norte-americana, o que não aconteceu. As autoridades americanas apenas lembraram, como fizeram agora - diante da cooperação afoitamente anunciada por Chávez -, que os três países são signatários do Tratado de Não-Proliferação Nuclear e devem respeitar os acordos de salvaguarda.

O pedido de compra do reator argentino e a proposta de cooperação nuclear com Brasil e Argentina não correspondem às necessidades energéticas e tecnológicas da Venezuela. São, a rigor, parte da estratégia populista de Chávez que, para atingir seus objetivos, não se peja em constranger os países vizinhos. O governo argentino, por exemplo, está dividido quanto à conveniência da venda do reator para a Venezuela. O governo brasileiro, como mostrou a reação do chanceler Celso Amorim, em oposição ao entusiasmo inicial do assessor Marco Aurélio Garcia, parece estar na mesma situação.

No caso da proposta de acordo de cooperação, será fácil descartar a iniciativa venezuelana. Os programas de pesquisa nuclear do Brasil e da Argentina seguem linhas distintas. O da Venezuela simplesmente não existe. Considerados esses fatores, como observou o ex-ministro da Ciência e Tecnologia José Goldemberg um acordo daquela natureza não traria vantagens para o Brasil. A não ser, é claro, que Chávez esteja interessado na transferência de tecnologia de enriquecimento de urânio, que o Brasil domina. Mas esse é um conhecimento de natureza dual - serve tanto para fins pacíficos como bélicos - que não se transfere. Antes de entrar nesse tipo de aventura, o governo brasileiro deveria reavaliar o seu próprio programa nuclear, que há anos está à espera de decisões cruciais para seu futuro.