Título: Desarmamento e violência
Autor: Marco Maciel
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/10/2005, Espaço Aberto, p. A2

O Brasil caracteriza-se hoje, infelizmente, como um país que integra o ranking das nações com alto nível de violência. É constrangedor constatar que, em que pesem as medidas adotadas ao longo dos anos, a violência continua a atormentar a população e a desafiar as autoridades. A aprovação pelo Congresso Nacional do chamado Estatuto do Desarmamento é o resultado de um esforço para melhorar o desempenho de nossas instituições, sobretudo as ligadas à segurança pública, oferecendo ao País um conjunto de medidas voltadas para a redução da criminalidade. Evitar o porte de armas de fogo, promover o desarmamento da população e desestimular a fabricação de tais armas são providências que concorrem para reduzir os níveis de violência, razão por que, no referendo deste domingo, meu voto será o "sim".

Não podemos, contudo, gerar a vã expectativa de que somente com essa medida vamos, num passe de mágica, resolver o problema. Faço essas ponderações para que não haja, por parte da sociedade, uma reversão de expectativa - para usar uma expressão de Roberto Campos.

A violência não será drasticamente reduzida sem que causas mais profundas sejam atacadas, entre elas a desagregação familiar e a necessidade de maiores investimentos em educação. A educação liberta o cidadão, cria condições para seu acesso ao mercado de trabalho, para que se realize na comunidade em que vive e para que ascenda socialmente num país ainda marcado não somente pela pobreza, mas também por muitas formas de desigualdades. Uma pessoa inserida na sociedade e que participa dela ativamente certamente não vai encontrar na violência uma saída ou uma solução para seus conflitos internos.

Da mesma forma, convém investir na área de saúde e buscar executar, prioritariamente, políticas de inclusão social, voltadas, sobretudo, para a geração de empregos e a melhoria da renda. É certo que não se pode atribuir a violência exclusivamente ao desemprego, mas é evidente que, se trabalhássemos mais essa questão, certamente teríamos resultados expressivos.

É necessário, também, um esforço dos governos, das instituições intermediárias e da sociedade como um todo para que se aumente a coesão social de nosso povo. De outro lado, medidas de caráter policial e provindas do aparelho judicial do Estado vão colaborar para minimizar o problema, na proporção em que se consiga evitar a impunidade.

A ocasião em que nos preparamos para a realização desse referendo serve também para insistirmos num alerta com relação à prática da democracia participativa, ou seja, do recurso à soberania popular: não deve haver uma banalização desse instituto, mesmo porque a sua utilização excessiva pode levar, como ocorre em alguns países, a uma certa apatia do eleitor.

Se é verdade que o uso do referendo reflete a história e as tradições de cada país, ao analisarmos a história do Brasil vamos verificar que, ao longo dos 116 anos de toda nossa vida republicana, somente em duas oportunidades recorremos à realização desse tipo de consulta popular: em janeiro de 1963 e abril de 1993.

A primeira vez, quando o País vivia uma grande crise institucional decorrente da renúncia de Jânio Quadros e da posterior posse de João Goulart. Na ocasião, realizou-se um plebiscito para que o eleitor opinasse sobre a manutenção ou não do sistema de governo em vigor - um pseudoparlamentarismo, aliás.

A segunda, em função de determinação contida na Carta Constitucional de 1988 (artigo 2º das Disposições Constitucionais Transitórias, alterado pela Emenda Constitucional nº 2, de 1992). O eleitorado, pela sua imensa maioria, manteve a República - uma atitude coerente com a "Constituição cidadã" - e o presidencialismo como sistema de governo.

Favorável a medidas destinadas a ampliar a participação popular, tendo inclusive apresentado projeto regulamentando o artigo 14 da Constituição, que dispõe sobre o assunto, entendo que esses mecanismos só devem ser exercitados quando nos encontramos diante de problemas de grande expressão que justifiquem o recurso ao sufrágio popular.

A proibição da comercialização de armas de fogo e munição é, a meu ver, uma matéria que cabia privativamente ao Congresso Nacional dispor, no exercício de sua prerrogativa de legislar, conforme afirmei na ocasião em que o Estatuto do Desarmamento foi discutido no Senado. De mais a mais, sabemos que a consulta popular, além de seu elevado custo financeiro, deixa ao cidadão apenas o "sim" ou o "não" - algo que elide o debate do assunto em toda a sua complexidade.

Umberto Eco, em artigo intitulado Votação no ciberespaço - publicado neste jornal na edição de 6/7/1997, quando se discutiam os passos e os avanços que a União Européia vem adotando -, refere-se a uma "noção idealizada da democracia ateniense" como paradigma de democracia direta e traça um paralelo com os anseios da sociedade moderna ao destacar o papel do referendo como instrumento de participação política: "O que traz o referendo para as discussões é a possibilidade de interpelar todos os cidadãos sobre algumas questões excepcionais, nas quais o juiz supremo deve ser o senso comum (...), mas não sobre problemas que exigem competência específica e, muitas vezes, técnica."

Ilustrativamente, Umberto Eco reporta-se à capacidade limitada de o cidadão formar opinião questionando a si mesmo: "Por que não consegui formar uma opinião a esse respeito, mesmo sendo uma pessoa culta?" E em seguida responde: "Porque tenho capacidade de adquirir informações em certos setores, mas não em outros. (...) Eles (os parlamentares) têm tempo para formar uma idéia competente sobre essas questões - e também o dever de fazê-lo."