Título: Europa deve aprender com o fogo francês
Autor: Reali Júnior
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/11/2005, Internacional, p. A9

Na Bíblia, lemos que Deus guiou seu povo na saída do Egito com uma coluna de nuvens de dia e uma coluna de fogo de noite. Agora, a juventude empobrecida dos guetos nas periferias da França está falando para todos nós com uma coluna de fumaça de dia e uma coluna de fogo de noite. Suas colunas são feitas por carros queimando, mas essa violência aparentemente insensata traz uma mensagem tão clara quanto a que Moisés seguiu. A Europa, que para seus pais imigrantes parecia a Terra Prometida, se transformou numa nova escravidão. "Quando você atira um coquetel molotov, está dizendo 'socorro!'", disse um jovem de nome Bilal a um jornalista no Conjunto Habitacional 112 em Aubersville. "A gente não tem palavras para dizer o que sente; a gente só sabe falar tocando fogo." Então eles sabem o que estão fazendo. Estão falando por meio do fogo.

Dizer isso não significa justificar o recurso à violência. Nada no mundo justifica espancar até a morte um espectador idoso e inocente, Jean-Jacques le Chenadec - um operário aposentado que, segundo o noticiário, estava simplesmente tentando apagar o fogo numa lata de lixo perto de sua casa. Nada. Mas, mesmo que uma frágil paz social seja restaurada, como esperamos, com as medidas drásticas do estado de emergência, precisamos começar a entender o que está sendo dito pelas chamas.

Alguns comentaristas contrastaram a Grã-Bretanha pacífica e multicultural com a França explosiva e monocultural. Isso me parece uma perigosa complacência. Claro, a mensagem dos Citroens e Renaults queimando é dirigida primeiramente, e sobretudo, aos líderes franceses. Nenhum país da Europa tem uma proporção maior de homens e mulheres descendentes de imigrantes, em especial do continente africano e, principalmente, muçulmanos: de 6 a 7 milhões deles, ou mais de 10% da população.

Em poucos outros países europeus os descendentes de imigrantes são tão fortemente guetificados como nos conjuntos habitacionais depauperados, como o 112 de Aubersville. Em poucos outros países um ministro do Interior denuncia os desordeiros como "gentalha" que deve ser tratada com jatos de limpeza, e continua sendo um dos políticos mais populares do país. O fato de o primeiro-ministro francês ser, neste momento, um aristocrata não eleito com a caneta freqüentemente mergulhada em tinta púrpura torna difícil não falar de um ancien régime. De fato, poucos países europeus têm uma elite metropolitana mais exclusiva.

Somente uns poucos descendentes de imigrantes do outro lado do Mediterrâneo se projetaram na vida pública na França do pós-guerra. Sua posição foi-me perfeitamente resumida numa foto recente em Le Monde mostrando o primeiro-ministro aristocrático de cabelos prateados, Dominique de Villepin, saudando Azuz Begag, o ministro para a promoção da igualdade de oportunidade, com tapinhas na cabeça. Tap, tap, meu bom Azuz. Enquanto isso, a realidade social da "oportunidade igual" é melhor resumida no título do livro de um empresário de origem marroquina, O Elevador Social Está Quebrado: Usei as Escadas. A evidência de racismo endêmico no mercado de trabalho francês é esmagadora. O escritor britânico Jonathan Fenby conta a história de um apresentador de TV de um desses conjuntos habitacionais que escreveu duas cartas pedindo emprego a um canal de televisão estatal. Em uma ele deu seu nome africano e seu endereço real; na outra, um nome francês e um endereço melhor. A primeira recebeu uma recusa; a segunda, o convite para uma entrevista.

Além disso, a França representa o extremo europeu de assimilação tentada. Nenhum outro país europeu foi tão agressivamente rigoroso com a proibição do lenço de cabeça islâmico. Nenhum fez menos concessões às diferenças culturais. Como observa Alain Duhamel em Le Désarroi Français, "a única comunidade que a França reconhece é a comunidade nacional".

Tudo isso é peculiar à República Francesa, ou ao menos mais extremamente representado por ela. Mas não tenha ilusões: esse é um problema que aflige o conjunto da Europa. Foram imigrantes de segunda geração na pacata e multicultural Grã-Bretanha que perpetraram a atrocidade muito pior que foram os atentados a bomba de julho em Londres. Na verdade, na forma de sua revolta, Bilal e seus camaradas são, de certo modo, franceses antiquados, ainda que franceses sem palavras. Pois os protestos espetaculares - mas, em última instância, não muito sangrentos -, com bloqueios de ruas e barricadas, fazem parte de mais de 200 anos da velha tradição revolucionária francesa. Os jovens imigrantes de segunda geração da França queimaram carros; os da Grã-Bretanha queimaram seres humanos. O que você preferiria? E foi a pacífica e multicultural Holanda que, em 2004, assistiu ao assassinato de Theo van Gogh.

A maioria das sociedades européias ocidentais tem comunidades grandes e insatisfeitas de descendentes de imigrantes. Nós os trouxemos para cá, antes de mais nada, em parte como o legado da retração de nossos impérios europeus, em parte como trabalhadores para realizar os serviços inferiores que os europeus nativos não queriam fazer nos anos de crescimento econômico exuberante após 1945. Nós os conservamos, a maioria deles, ao alcance da mão, tratando-os mais como residentes do que como cidadãos plenos da Europa. Na Alemanha, por exemplo, a maioria dos chamados Gastarbeiter da Turquia não era, até recentemente, convidada a assumir a cidadania alemã, apesar de viver no país havia já 30 anos. E a "guerra ao terror" depois do 11/9 acrescentou novos pretextos para a alienação.

Este é um problema de toda a Europa. Fico tentado a dizer que ele é o problema de toda a Europa; ou, pelo menos, juntamente com o desafio de criar mais empregos. Os dois estão intimamente relacionados. Em muitos conjuntos habitacionais que hoje estão falando pelo fogo, o desemprego chega a 40%, enquanto a idade média é inferior a 30 anos. Já os desempregados europeus nativos mais velhos estão fortemente representados no eleitorado da Frente Nacional de Jean-Marie Le Pen e outros partidos antiimigrantes por toda a Europa. Isso tem toda a feição de uma espiral descendente.

Por todas as suposições razoáveis, a população de descendentes de imigrantes e a cultura muçulmana da Europa crescerão significativamente na próxima década, tanto pelas taxas de natalidade relativas mais altas como pela imigração adicional. Se não conseguirmos fazer nem mesmo os que vivem na Europa desde o nascimento se sentirem em casa aqui, pagaremos caro por isso.

Enfrentar seus problemas socioeconômicos é metade da resposta, mas uma metade muito difícil, pois a chave é emprego, e empregos estão sendo criados mais na Ásia e na América que na Europa. A outra metade tem a ver com cidadania, identidade e as atitudes cotidianas de cada um e de todos para com seus concidadãos.

Ser europeu deveria ser a identidade cívica abrangente que permite a imigrantes e descendentes de imigrantes sentir-se em casa. Deveria, em teoria ao menos, ser mais fácil sentir-se turco-europeu, argelino-europeu ou marroquino-europeu do que se sentir turco-alemão, argelino-francês ou marroquino-espanhol, porque ser europeu é, por definição, uma identidade mais ampla, mais abrangente. Mas não é mais fácil. De alguma forma, o europeísmo não funciona assim. Os europeus nativos podem se sentir franco-europeus, germano-europeus ou hispano-europeus. Alguns - nós, os poucos felizes - podem se sentir até britânico-europeus. E há exemplos de pessoas que definitivamente se sentem, por exemplo, paquistano-britânicas ou tunisiano-francesas. Mas a hifenização direta raramente funciona. Para enfrentar o maior problema de nosso continente, e não apenas da França, precisamos fazer nada menos que redefinir o que significa ser europeu.