Título: Biossegurança: agora, governo corre
Autor: Lígia Formenti e Cristina Amorim
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/11/2005, Vida&, p. A23

O ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, colocou em prática ontem mesmo a regulamentação da Lei de Biossegurança - que trata da pesquisa com organismos geneticamente modificados e do uso de células-tronco embrionárias. No mesmo dia em que o decreto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva com as novas normas foi publicado, Rezende editou uma portaria que é o ponto de partida para a recomposição da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança - o órgão encarregado de analisar projetos de pesquisa e da comercialização de produtos. O ministro espera que a primeira reunião da CTNBio seja realizada ainda neste ano.

"Temos de andar rápido. Mas estou confiante que vamos cumprir o prazo", afirmou Rezende em Brasília. Na portaria editada ontem, o ministro criou a comissão encarregada de formar uma lista tríplice com cientistas indicados para integrar a CTNBio. Tal comissão terá um mês para apontar os nomes dos candidatos. Rezende está confiante de que esta etapa será cumprida antes do prazo. Ao mesmo tempo, o ministro deverá enviar hoje um carta para que ministérios indiquem rapidamente seus representantes.

A rapidez desejada por Rezende não é à toa. Em março, quando a Lei de Biossegurança entrou em vigor, a CTNBio foi desativada. Desde então, 417 processos de novas pesquisas, de importações de produtos usados em estudos e relatórios ficaram parados, aguardando uma nova formação da CTNBio. Com a regulamentação, a tendência é que o número aumente rapidamente.

O ministro sabe que vai demorar um tempo ainda para colocar a casa em dia. Mas definiu algumas prioridades. "A recomendação é que, assim que retomar as atividades, a CTNBio analise processos mais urgentes", afirmou. E ele já tem em mãos a lista do que não pode esperar: nove processos de liberação comercial na área humana e animal e outros 49 na área vegetal e ambiental: oito deles, de liberação comercial.

TEMPO PERDIDO

A demora comprometeu o plantio de organismos geneticamente modificados em pelo menos dois anos. "Até a CTNBio sentar de fato para trabalhar, outra safra terá sido perdida", diz Alda Lerayer, secretária-executiva do Conselho de Informações de Biotecnologia (CIB). Em nota, a empresa Monsanto afirma que "a retomada das atividades da CTNBio é um importante passo para a continuidade das pesquisas de novas tecnologias agrícolas".

Contudo, alguns desses métodos são barrados pelo texto, que impede a produção de grãos inférteis. Um trecho feito especificamente para proibir o uso do gene terminator - que torna a semente estéril e obriga os produtores a comprarem novas a cada safra, em vez de aproveitarem uma parte de sua colheita - acaba impedindo outras técnicas, como a produção de frutos sem semente e de plantas como fonte de matéria-prima para vacinas. "Do jeito que está, a regulamentação coíbe tecnologias que são muito interessantes para o Brasil", diz o pesquisador Francisco Aragão, da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia.

AVANÇO

A regulamentação da lei também foi comemorada pelo ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues. "Finalmente temos um projeto que nos dá o deslanche para avançar rapidamente." Ao comentar a publicação do decreto presidencial, Rodrigues adiantou que em breve fará a indicação de seu ministério para compor a CTNBIo.

Rezende disse não haver formas de mensurar o prejuízo provocado na ciência brasileira pela interrupção das atividades da CTNBio neste ano. "Mas prefiro olhar por outro ângulo: agora temos uma lei moderna, que muito vai nos auxiliar."

A demora na regulamentação foi provocada porque integrantes do governo divergiam sobre dois temas: o quórum necessário para a aprovação da comercialização de organismos geneticamente modificados e a criação de um dispositivo que impediria que integrantes da CTNBio participem da análise de processos que, de alguma forma, eles têm interesses pessoais ou profissionais.

Na queda-de-braço de setores do governo, saiu vencedora a ala formada pelo Ministério do Meio Ambiente - leia-se Marina Silva - e Ministério da Saúde. Ambos defendiam o quórum de 2/3 para a aprovação da comercialização de transgênicos. Os Ministérios da Agricultura e da Ciência e Tecnologia defendiam apenas maioria simples - como acontece para pedidos de pesquisa.

"Isso de fato vai dificultar um pouco a aprovação dos pedidos", admitiu Rezende. O secretário de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente, João Paulo Capobianco, justificou o quórum. "Pesquisa é algo restrito. Mas comercialização envolve uma série de critérios. Qual seria a segurança da sociedade de consumir um produto que passou 'raspando' na comissão? Assim, todos terão confiança na decisão. Em última análise, será bom até para empresários."

Para Alda Lerayer, do CIB, a exigência acabou concedendo para a comissão um caráter político, não apenas técnico. "Por que, no caso da pesquisa, basta a minoria simples? Por que essa diferenciação?", questiona. "É um texto muito mais severo do que esperávamos."

O coordenador-executivo do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Sezifredo Paz, lamenta que os Ministérios de Saúde e Meio Ambiente não tenham poder de veto no caso da comercialização de transgênicos. "Uma árvore doente dá frutos doentes. A lei (da Biossegurança) tem dispositivos inconstitucionais que submetem ministérios à CTNBio, e a regulamentação é seu reflexo."

Quanto à utilização de células-tronco embrionárias, a regulamentação segue o que o setor esperava. Ao Ministério da Saúde, cabe agora o levantamento de quantos embriões congelados existentes no Brasil podem ser doados para a pesquisa. A venda de linhagens de células fica proibida.