Título: A política econômica e o social
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/12/2005, Notas e Informações, p. A3

Por uma coincidência, duas situações distintas permitiram, na quarta-feira, pôr em evidência uma questão que costuma ser tratada no Brasil de forma simplória: a relação entre uma política econômica que restringe o gasto público para assegurar a integridade das finanças nacionais e a aptidão do governo que a adota para levar adiante políticas sociais não menos necessárias de redução da pobreza e da desigualdade. O assunto emergiu, inesperadamente, numa reunião do Conselho de Segurança Alimentar (Consea) com a presença do presidente Lula e, previsivelmente, na terceira sabatina a que o ministro Antonio Palocci é submetido no Congresso em três semanas, dessa vez na comissão especial da Câmara que discute a proposta de emenda constitucional que cria o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb).

A idéia de que o rigor fiscal é um breve contra o combate efetivo às iniqüidades sociais estabelece uma relação linear entre investimento público, crescimento econômico e elevação dos rendimentos da população mais pobre com redução da distância entre ela e os estratos situados do meio para o topo da pirâmide social. O argumento não leva em conta que a expansão da economia estimulada pelo afrouxamento irresponsável dos cordões da bolsa estatal está fadada a ter vida breve - como tantas vezes se viu, antes da mudança de mentalidade que levou à compreensão do que realmente significa desenvolvimento sustentado. Além disso, políticas expansionistas em grande estilo são usinas de inflação - cujo principal efeito socialmente perverso consiste em neutralizar os ganhos proporcionados pelas políticas de promoção social. Também esse filme já passou no Brasil.

Por ser um sofisma, a tese de um nexo mecânico entre austeridade no manejo dos recursos públicos e degradação contínua da condição da maioria do povo foi desacreditada ainda agora pelos resultados expressivos da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (Pnad) referente a 2004 e pelas conclusões, na mesma linha, de um estudo sobre a miséria no País, elaborado na Fundação Getúlio Vargas (FGV). E foi a isso que o presidente Lula, no Planalto, e o ministro Palocci, na Câmara, aludiram, quando interpelados pelos críticos. No primeiro caso, a representante de uma ONG de assistência social. No segundo, um deputado do PSOL. Cada um a seu modo, presidente e ministro deixaram claro que, tivesse a política econômica as conseqüências inevitáveis que lhe atribuem, muito diferentes, para pior, seriam os números da Pnad.

"A política econômica nunca foi empecilho para a política social", afirmou Lula, respaldado por evidências insofismáveis, como a diminuição do contingente situado abaixo da linha da pobreza e a redução da distância entre os diversos grupos de renda, medida pelo Índice Gini - dando prosseguimento a uma tendência que, para perplexidade dos que raciocinam em bloco, coexiste com a manutenção das diretrizes econômicas do governo anterior. E, com conhecimento de causa, Lula não perdeu a ocasião para fazer um comentário de rara felicidade: "É uma cultura política que veio do sindicato, da Igreja e do movimento social descarregar em cima de quem está mais próximo a culpa por aquilo que aconteceu." De seu lado, Palocci fez questão de ser extremamente preciso ao contestar o parlamentar que o acusava de patrocinar um "hipermensalão de juros aos banqueiros", em prejuízo do social.

Depois de assinalar que as diretrizes do governo no campo da economia têm um efeito social "fortíssimo", concluiu o ministro: "Os números não dão razão à afirmação de que essa política econômica produz resultados sociais piores que os de uma política econômica que não cuida adequadamente das questões fiscais." Esse, de fato, é o ponto nevrálgico da questão. Dito de outro modo, mesmo admitindo a hipótese - já desmentida fartamente pela experiência - de que a gastança faz bem para os pobres, sem acarretar efeitos colaterais adversos para eles e para a sociedade inteira, ela não seria inerentemente superior a que é o seu oposto. Outra falácia é sustentar que os números de 2004 seriam mais auspiciosos sob uma política econômica de mão aberta. Na realidade, eles poderiam ser isso com a mesma política - se outra fosse a qualidade da gestão do gasto público no governo Lula.