Título: Indulto ou insulto?
Autor: Lúcia Maria Casali de Oliveira e João Antonio
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/12/2004, Espaço Aberto, p. A2

A sociedade assiste, atônita, a mais um indulto de Natal. A medida, na verdade, é um presente concedido a criminosos perigosos, que terão suas penas excluídas, pois o sistema repressivo não consegue manter os condenados presos. Simples assim. Como não há vagas, pela negligência e ineficiência do Estado, por que simplesmente não abrimos as portas das celas e permitimos que os infratores da lei voltem a conviver com a sociedade? Parece lógico, certo?

Errado. Ao menos para a imensa maioria da sociedade e para os operadores que levam a sério o Direito, estudam e aplicam o que está escrito nas leis e se preocupam, verdadeiramente, com a segurança das pessoas.

A execução penal, ou seja, o cumprimento do determinado ao final de um processo judicial que propiciou ao réu todas as condições para se defender, é a fase mais importante do direito punitivo. Isso não são palavras nossas, nem novas, já foram apregoadas pelo jurista Roberto Lira: "É pela execução, em última análise, que vive a Lei Penal. Antes daquela, o criminoso não sente a pena."

Bem por isso, o legislador consagrou como pilares fundamentais da Lei de Execução Penal a proteção dos bens jurídicos, a reeducação do preso e sua reinserção social, buscando sempre amenizar as conseqüências da segregação, que, reconhecidamente, está na índole de todos os sistemas universais e para a qual ainda não se encontrou substitutivo adequado. É seguramente um mal, contudo, no interesse coletivo, um mal necessário.

O reiterado descumprimento desses mecanismos gerou um sistema penitenciário caótico, precário e abandonado, que devolve à sociedade o condenado, após cumprir sua pena ou parte dela, sem o menor preparo ou amparo.

Conhecedor de tais fatos, o governo brasileiro, em vez de elaborar uma política penitenciária realista e humanitária, prefere adotar o caminho fácil da concessão de indulto na época do Natal (Decreto n.º 5.295, de 2/12/2004) para esvaziar as prisões, à custa de uma sociedade combalida pela violência enfrentada diariamente.

A medida de clemência, que deveria beneficiar o condenado que mereça o perdão de sua pena, é transformada pelo Poder Executivo em pretensa medida de política criminal, destinada exclusivamente a despovoar prisões, desprezando o fato de que a impunidade gera maior criminalidade.

E surge, portanto, um efeito colateral que talvez os criadores do indulto não tenham percebido. A sensação de impunidade provocada pelos seguidos indultos indiscriminados, como se disse, aumenta a criminalidade. Pronto, movimenta-se, ao inverso, a engrenagem. O que seria medida destinada a esvaziar e despovoar as prisões tem efeito contrário. Explica-se. O aumento da criminalidade gera mais prisões e, em breve, o sistema prisional estará ainda mais caótico do que antes do indulto. Com uma diferença: a parcela de pessoas de bem vitimadas pelos criminosos será ainda maior.

O sr. presidente da República esquece que não se pode transigir com criminosos contumazes e perigosos, em prejuízo da sociedade. Ignora que a tolerância, para as mentes criminosas, é vista como sintoma de fraqueza. Fraqueza que fica evidenciada, por exemplo, quando alguém, condenado a seis anos de reclusão em regime fechado por roubo com arma de fogo, é posto em liberdade depois de cumprir apenas um sexto da pena, ou seja, um ano.

Estarrecida, a sociedade vê o Poder Executivo tratar igualmente os desiguais, pondo em liberdade, nas ruas, condenados com pena inicial ou restante de até seis anos (primários e reincidentes), independentemente do grau de periculosidade, sem nada exigir em troca. Se reincidirem, como prêmio, voltarão ao regime em que se encontravam, contrariando as normas de execução penal que regulam a regressão e a falta grave.

A pretexto de solucionar seu problema de "déficit" de vagas no sistema penitenciário, o governo brasileiro, por decreto, cria uma nova figura de Direito Penal, com a qual fere o princípio da segurança jurídica e da reserva legal, afronta o Código Penal e a Lei de Execução Penal e, pior, subtrai da apreciação do Poder Judiciário a análise do perfil do criminoso e da gravidade do delito praticado.

Tomemos como exemplo outra área em que o Estado também se revela ineficiente, a da saúde pública. Ninguém em sã consciência cogita de resolver a questão da falta de leitos hospitalares concedendo alta aos pacientes, independentemente da gravidade ou do estágio da doença. Da mesma forma, a questão penitenciária não será resolvida com atitudes demagógicas e meramente paliativas emanadas dos gabinetes onde se isolam os responsáveis pelo gerenciamento do sistema penitenciário do País, à revelia da vontade da maioria da sociedade brasileira e de seus legítimos representantes no Congresso Nacional.

Os sistemas penal e prisional clamam por reformas, que não podem ser realizadas apenas no papel. Devem decorrer de trabalho sério, árduo, contínuo e, acima de tudo, de atitudes responsáveis, inovadoras e revolucionárias, capazes de romper definitivamente com a estrutura implantada. Para tanto é necessária uma vontade política determinante e apta a solucionar os problemas, em nível prático, e não apenas teórico.

A viabilização da infra-estrutura mínima necessária à aplicação da Lei de Execução Penal seria o início da construção de todo um sistema de segurança pública, cuja garantia é tarefa precípua do Estado. Há de se buscar um sistema de penas mais coerente e consentâneo com a realidade, de modo a se obter a diminuição da criminalidade e da impunidade.

A falsa solução visada pelo decreto recém-editado é proporcionalmente insignificante quando comparada aos riscos com que arcará a sociedade após a liberação desses condenados. Aliás, o Decreto n.º 5.295 não trata de um indulto a condenados, mas de um insulto à sociedade brasileira.

Lúcia Maria Casali de Oliveira, procuradora de Justiça, é secretária-executiva da 2.ª Procuradoria de Justiça do Estado de São Paulo.

João Antonio Bastos Garreta Prats, procurador de Justiça, é presidente da Associação Paulista do Ministério Público