Título: 2004, a morte das CPIs
Autor: Jarbas Passarinho
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/01/2005, Espaço Aberto, p. A2
De início, a mídia só se referia a ele como bicheiro. Intencionalmente ou não, uma tática sub-reptícia de desmoralizar-lhe a acusação que ousava fazer contra Waldomiro Diniz, um íntimo auxiliar do poderoso ministro que, na linguagem metafórica do presidente Lula, tão apreciada pelo povo, era o seu "capitão do time", referindo-se ao ministro José Dirceu... Indiscutivelmente competente, houve quem o comparasse a Golbery e até quem, exemplar da velha e bem-sucedida fauna de áulicos, lembrasse, no talento, a semelhança com o príncipe Metternich. De posse, porém, de uma prova inconteste, a seu favor, o então bicheiro exibiu fita gravada em filme, onde, com a serenidade dos justos, o influente auxiliar do ministro - ele mesmo tratado como "ministro" por deputados dependentes dos favores do chefe da Casa Civil -, além de negociar forte soma de dinheiro em certa negociata, humildemente pedia uma modesto acréscimo: 1% para ele mesmo.
A oposição parlamentar, ainda a duras penas existente, escandalizou-se, não certamente porque o suborno seja inédito na vida pública, mas porque o objetivo era ferir gravemente o governo na figura do "capitão do time". Acreditando que a Constituição seja de fato a Carta Magna assecuratória, no seu pomposo Preâmbulo, dos direitos sociais e individuais, da igualdade e da justiça, como valores supremos da sociedade, dela se serviu para requerer uma comissão parlamentar de inquérito (CPI). O fato era concreto e o número de requerentes, o que a Constituição exige. Sabe-se quanto pode um presidente, especialmente no exercício de um presidencialismo imperial. Não poderia perder o seu ministro predileto.
Vi, num jornal, fotografia de Sua Excelência, no auge do escândalo. Sentado, cabeça baixa, transparecendo doloroso abatimento, a digna esposa olhava-o com uma ternura solidária. Causou-me pena, porque interpretei a foto do casal como a representação física da dor gerada na decepção profunda. Posso estar equivocado, se o motivo fora outro, mas o atribuí ao dilema que vivia, ameaçado o governo de ver rasgada em trapos a bandeira da ética política de que o partido que ele criou fez praça.
A CPI, que poderia aspirar a ser a famosa e cediça citação da espada de Dâmocles, na cabeça do indispensável ministro, não foi instalada sequer. Desviou-se para a do corrupto auxiliar. E a mídia, antes severa, passou a chamar o já agora Carlinhos Cachoeira de empresário de negócios lotéricos. Waldomiro provou o acerto com que Shakespeare definiu a volubilidade do tempo: "Assemelha-se ao hospedeiro dos poderosos, que estende friamente a mão ao amigo que se vai, caído em desgraça, e, de braços abertos, estreita o novo que chega."
A Carlinhos Cachoeira coube em seqüência atingir novamente Waldomiro. Agora pelos rastros deixados quando diretor da Loteria no governo do Estado do Rio de Janeiro. A diferença com o caso anterior é que a Assembléia Legislativa fluminense instalou uma CPI para investigar negócios escusos envolvendo as mesmas personagens da CPI natimorta de Brasília. A divergência é notável, quanto ao cumprimento do direito constitucional de requerer uma CPI, e em desfavor da integridade moral de quem deveria averiguar os fatos, a começar pelo deputado que a presidia. Como um ímã a atrair o lixo metálico do homem, ninguém menos que presidente da CPI é acusado de extorquir o vil metal - e não pouco - para retirar do relatório comprometedor o já famoso Carlinhos Cachoeira. Por seu turno, este tem outra fita comprometedora.
Na Assembléia do Rio de Janeiro a corrupção gangrenou o Legislativo estadual. O sapato mudou de pé. A CPI passa a ser objeto de meio coativo de extorsão, e não de apurar corrupção. Degradou-se a finalidade da CPI.
Fora isso pouco, é agora o Congresso Nacional que encerra, sem relatório sequer, a CPI mista que deveria apurar a remessa ilegal de, no mínimo, US$ 30 bilhões para o exterior, pelo Banestado, por meio da famosa conta CC5. A mesma conta que Ciro Gomes prometia devassar quando candidato à Presidência da Republica, em 2002. O que se assistiu, com perplexidade, foi a uma sucessão de incidentes entre o presidente e o relator, numa disputa desastrosa para os trabalhos da comissão. A mídia era nutrida de denúncias de suspeição de comprometimento, ora sobre congressistas do partido de um, ora de outro dos litigantes.
O desfecho não poderia ser mais frustrante, já chamado de "presente natalino" oferecido a todos os suspeitos de culpa, já que a imprensa informa que o relator, encarnando Papai Noel, chegou ao máximo de solércia: propôs o indulto generalizado. Entrementes, um senador da liderança do governo tinha seus negócios com a CC5 do Banestado publicados como remessas feitas por intermédio de doleiros, que Sua Excelência nega e os jornais confirmam. Em represália, talvez, o relator, em seu relatório, incluiu um presidente do Banco Central (BC) que fez parte do governo de Fernando Henrique Cardoso, do partido do presidente da comissão, que logo se apressa a fazer relatório alternativo, indiciando o atual presidente do BC. Clara a represália. Nenhum relatório foi votado.
O prejuízo não é só do dinheiro do povo, financiando essa página por todos os títulos deplorável. A CPI do Banestado não deu em pizza, foi para o lixo do Legislativo.