Título: O segundo governo Bush
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Fonte: O Estado de São Paulo, 19/01/2005, Editorial, p. A3

A nalistas políticos de Washington advertem que o presidente George W. Bush, a ser reempossado amanhã, terá contra si a tradição de que o segundo governo tende a transformar os seus titulares em "patos mancos", pouco mais do que figuras de proa. Seja porque, sobretudo depois do pleito de meio de mandato, o partido no poder tende a se ocupar da disputa seguinte, seja porque a oposição tende a tirar proveito dos pecados presidenciais expostos (de Watergate a Monica Lewinsky). Bush também está exposto a um enfraquecimento porque nos últimos 100 anos nenhum outro presidente se reelegeu com tão ínfima vantagem sobre o desafiante: 2,46%.

Em 2008, Bush de fato poderá ser incluído na galeria de ocupantes da Casa Branca que passaram à história pelo que fizeram - para o bem ou para o mal - nos primeiros e não nos últimos quatro anos. Mas, a julgar pelo senso de missão, sem o freio da dúvida nem o corretivo da autocrítica, de que ele se imagina investido, pelo absoluto domínio republicano sobre as duas casas do Congresso e pela irrefutável hegemonia da direita na cena americana, seria imprudente prever, a esta altura, o declínio da liderança de Bush. Ou da ambição dos seus mais próximos interlocutores, a começar do vice Dick Cheney, de mudar radicalmente os Estados Unidos e a sua relação com o mundo, se não o próprio mundo, como começaram a fazer antes já do 11 de Setembro.

A extensa agenda doméstica do bushismo será provavelmente dominada pela privatização parcial do sistema previdenciário e de saúde, pela reforma tributária e das leis de imigração, e ainda pela temida "teocratização" da Suprema Corte, como os críticos se referem à esperada tentativa de Bush de nomear conservadores radicais em matéria de direitos sociais e civis para as vagas que deverão se abrir no tribunal constitucional do país, ao qual as causas da liberdade, da tolerância e da igualdade jurídica entre os americanos tanto devem. Para quem vê os Estados Unidos de fora - e corre o risco de contrair pneumonia quando a superpotência fica gripada -, a questão interna que se sobressai é outra.

Trata-se, evidentemente, da política fiscal de Bush II. Como se sabe, a combinação aventurosa de cortes de impostos sem precedentes (que beneficiaram os mais ricos) com incontido aumento do gasto federal (especialmente para fins militares) gerou nos últimos anos nos EUA um déficit público estratosférico - uma bomba-relógio para a economia mundial. A se confirmarem os prognósticos do ex-presidente do Fed (o banco central americano) Paul Volcker, que vê uma alta probabilidade de crise financeira nos EUA nos próximos cinco anos, as repercussões globais poderão ser catastróficas. E não há sinal de reversão na linha econômica da Casa Branca.

Tampouco existem motivos para esperar uma política externa substancialmente diferente da Doutrina Bush, anunciada em 2002, pela qual Washington se dá o direito de atacar qualquer país tido como ameaça potencial à América. De mais a mais, até onde a vista alcança os americanos continuarão atolados em um Iraque flagelado por hostilidades entre sunitas e xiitas que têm tudo para se transformar em guerra civil, mesmo que, por milagre, as eleições parlamentares marcadas para este dia 30 se realizem nas conflagradas regiões do centro e do norte e seus resultados sejam aceitos pelo conjunto das forças políticas.

Pois beira o inimaginável o cenário de retirada americana sem forças militares e policiais iraquianas efetivamente capazes de dar segurança à população. Isso, por sua vez, parece uma quimera, dado o sistemático extermínio de membros dos serviços de ordem. A verdade que Bush se recusa a ouvir é que a insurgência está ganhando a guerra pós-Saddam. Não fosse por isso, o secretário de Defesa Donald Rumsfeld, enfim rendendo-se aos fatos, não teria nomeado dias atrás um general, Gary Luck - que lhe valha o sobrenome -, para empreender um amplo reexame da estratégia da ocupação.

No plano diplomático, Bush fracassou em atrair homens e euros para ajudar os EUA a carregar o fardo iraquiano até o dia da verdadeira "missão cumprida", que a sua soberba o fez anunciar em 1.º de maio de 2004. Em todo caso, há quem espere que, no Departamento de Estado, a secretária Condoleezza Rice consiga a grande proeza de promover a paz na Palestina - o que mudaria tudo no Oriente Médio e atenuaria o contencioso entre Washington e o eixo Paris-Berlim, que inclui diversas outras questões. Mas é preciso ser muito otimista.