Título: 'Lula começou falando na reforma política, mas perdeu muito tempo'
Autor: Carlos Marchi
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/01/2005, Nacional, p. A8

O governador de Minas Gerais, Aécio Neves (PSDB), acha que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva está caindo na mesma armadilha em que caiu o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso: não propôs a reforma política logo no começo de seu governo e acabou tragado pela necessidade de apoio no Congresso. As legendas de aluguel, que enfrentariam duras restrições se a reforma política fosse adotada, trocam seu apoio pelo adiamento da reforma. "O presidente Lula perdeu muito tempo, não tocou o tema com o vigor e no momento indicados, logo no início do governo, e agora sofre pressões dos partidos aliados para que a reforma política não se consolide", argumenta Aécio.

Nos 20 anos da redemocratização, o neto do presidente Tancredo Neves, seu secretário na campanha civilista de 1985, diz que o sistema político gerado em 1985 está consolidado, mas cobra o fortalecimento dos partidos, para que eles reflitam segmentos da sociedade, a fidelidade partidária e o financiamento público de campanhas.

Até hoje Aécio chama o avô simplesmente de "Tancredo". Ele era um quase menino à época em que os fatos aconteceram; hoje ocupa um cargo que o avô perseguiu a vida inteira e só conseguiu conquistar quase no fim de sua vida. Eis a entrevista do governador:

Dizem que é complicado ser filho de Pelé. Como é que é ser neto de Pelé?

(Risos) No meu caso, foi um privilégio, pela possibilidade do convívio em um momento tão especial da vida nacional. Eu nunca me cobrei mais do que eu tivesse condições de dar. As coisas para mim aconteceram com muita naturalidade. A receita é não fazer comparações, Tancredo Neves foi único no seu tempo. Tive um grande privilégio, por uma questão hereditária, de poder conviver com Tancredo e compreender, ao menos em parte, como pensam os estadistas.

Na época, o que ele te contou e o que ele não contou?

Tancredo tinha um objetivo muito claro para o qual convergiam todas as suas ações, que era a consolidação da transição e da democracia. Ele teve de abdicar de amizades ou ignorar relações pessoais para privilegiar relações com setores mais distantes, que eram vitais para a transição. Ficava claro para mim a grande obstinação dele, inclusive do ponto de vista pessoal e físico, de superar as dificuldades para conquistar as liberdades democráticas. O que ele não me contou foi a profundidade do drama pessoal envolvido nessa busca.

Quais eram as principais qualidades do Tancredo?

Intransigência absoluta nos princípios e nos objetivos. Tancredo transigia às vezes na estratégia, operada em função do jogo e das necessidades. Mas ele tinha uma marca democrata muito forte. Foi o único deputado do PSD a votar contra a eleição do general Castello Branco, no momento em que brasileiros como Juscelino e outros votaram com ele. Com gestos de muita coragem pessoal ele simbolizou seu apoio a Getúlio Vargas na última reunião ministerial, no Catete, quando pediu permissão para prender o ministro da Guerra. São essas convicções democráticas absolutas, irretocáveis, e uma grande coragem pessoal. As pessoas às vezes tem uma imagem de Tancredo como um grande conciliador apenas, e aqueles que acompanharam mais de perto certamente concordarão comigo que ele tinha convicções democráticas extremamente enraizadas e uma coragem pessoal muito grande, inclusive física.

Vinte anos depois vivemos o período mais longo, abrangente e efetivo de democracia que o Brasil já teve. Que elementos levaram a isso?

É verdade. Ao longo de todos os ciclos democráticos que nós vivemos, poucas vezes aconteceu, se é que aconteceu, a eleição de um presidente da República com tanto apoio popular, embora paradoxalmente tenha sido pelo Colégio Eleitoral. Ele tinha uma obsessão naquele momento de buscar mais do que os votos indiretos. Ele queria ter apoio popular, achava que tinha que encher as ruas no País inteiro para legitimar a sua eleição. Quando, em Belém, a multidão o ovacionava, eu perguntei: "O que é que o senhor vai fazer com esse apoio todo?" Ele respondeu: "Eu vou gastá-lo em seis meses." Ele estava preparado para adotar as medidas necessárias, inclusive as impopulares, porque naquele momento o grande desafio era o controle da inflação. Ele só tinha um compromisso: com a História.

Cientistas políticos costumam dizer que as mudanças nos sistemas políticos devem ser pequenas e graduais. O que falta mudar no sistema político instalado a partir de 1985?

A grande fragilidade do nosso sistema político são os partidos políticos. É preciso que nós tenhamos medidas para fortalecer os partidos, enxugar o quadro partidário, para que eles sejam reflexo de segmentos da sociedade. Hoje, essa pulverização de siglas partidárias não permite isso. Implantar a fidelidade partidária é absolutamente essencial. A cláusula de barreiras - que já estão tentando desfigurar - e o financiamento público das campanhas são outras mudanças essenciais. Desde o governo de Fernando Henrique nós estamos caindo na mesma armadilha de manter a fragilidade dos partidos. E o presidente Lula não tem sido nada diferente. O que impede hoje o avanço da reforma política é a necessidade que o governo tem de atrair legendas que teriam problemas com esses novos mecanismos, mas são essenciais ao governo. O presidente Fernando Henrique teve de recuar em alguns momentos por pressão de alguns partidos da base, e nós estamos assistindo ao mesmo filme novamente. O presidente Lula, que começou com um discurso de reforma política, perdeu muito tempo, não tocou o tema com o vigor e no momento indicados, logo no início do governo, e agora sofre pressões dos partidos aliados para que a reforma política não se consolide.

O senhor acha que a qualidade da representação política melhorou nestes 20 anos?

Acredito que sim. A democracia aprimora. A qualidade da representação política melhorou, porque hoje existem mecanismos que apenas a democracia oferece, como a liberdade de imprensa, o acesso a todo tipo de informação, que permite que haja um acompanhamento e um julgamento maior da sociedade em relação a seus agentes políticos. A tendência é que esse aprimoramento continue ao longo do tempo.

Voltando a falar de Pelé: o senhor aspira à camisa 10?

(Risos) Olhe, a Presidência da República é destino. Quem não compreender isso vai sofrer muito e não vai conquistar nada.