Título: 'Tivemos a mais tranqüila das transições democráticas'
Autor: Carlos Marchi
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/01/2005, Nacional, p. A9

O senador e ex-presidente José Sarney se diz feliz e orgulhoso com a obra que os políticos brasileiros construíram nos 20 anos de redemocratização, mas reconhece que o desenvolvimento político do País não acompanhou os desenvolvimentos econômico e social. Em entrevista ao Estado, ele reclama que os políticos de hoje têm uma dívida a cumprir: uma reforma política que acabe com o voto proporcional e abra caminho para a implantação do voto distrital. Sarney acha que os políticos que atuaram na redemocratização souberam montar um sistema político invejável. "Tivemos a mais tranqüila das transições democráticas." Hoje, diz ele, esse sistema político tem solidez, mas a obra precisa ser complementada. Seu diagnóstico é de que a democracia representativa está em crise e os partidos não representam o povo. E o senador cobra a adequação do sistema político à nova realidade social brasileira. Eis a entrevista:

Como foi o seu rompimento com o regime militar e sua aliança com Tancredo Neves?

Quando saí do PDS e renunciei à presidência do PDS, eu não tinha nenhuma perspectiva de que nós pudéssemos chegar à aliança, embora eu soubesse que a sucessão dentro do PDS tinha se tornado inviável. Era impossível, naquele momento, o partido se reunir em torno de valores ou dos nomes postos.

O sr. era presidente do partido que sustentava o regime e acabou vice na chapa de Tancredo. Como foi a escolha de seu nome?

Por eu ter sido presidente do PDS, Tancredo tinha a idéia de que eu tinha influência muito grande entre os membros do Colégio Eleitoral, que eu conhecia as relações e as ligações das pessoas. Quem falou isso comigo primeiro foi o Aureliano (Chaves, vice-presidente). Eu disse que, tendo deixado a presidência do PDS, não seria bom para mim, pessoalmente, ser candidato a vice. Aureliano me disse: "Não se exclua." Depois o Tancredo me chamou a Minas e me fez um apelo para eu aceitar a Vice-Presidência. Eu disse que devíamos tentar outros nomes. Depois, num jantar em Belo Horizonte, aceitei, mas disse: "Tá bem, Tancredo, eu aceito, mas quero dizer que vamos tentar uma outra solução. E, se ela surgir, não há problema nenhum."

Como o sr. vê hoje, 20 anos depois, aquele momento da doença do presidente eleito. O senhor temeu pelas instituições?

Realmente, naquele momento, não tínhamos nenhuma noção do que podia acontecer. Nossas instituições não eram tão consolidadas e, ademais, a única força organizada que existia em condições de tomar uma decisão a nível de poder eram as Forças Armadas. E isso era sempre uma coisa que todos temíamos, que pudesse haver um retrocesso. Acho que nós devemos aos políticos daquele momento a sabedoria de um processo, de uma engenharia política que realizou a mais tranqüila das transições democráticas. Aqui nós não tivemos de fazer nenhuma hipoteca com os militares, como no Chile e na Argentina. Ao mesmo tempo, foi possível juntar todas as nossas forças, unir os partidos. Isso aconteceu graças a Tancredo, um homem preparado pela História para aquele momento. Tinha uma enorme experiência política, uma grande vivência histórica, uma presença predominante nos acontecimentos daqueles anos todos. Ele nos comandou durante aquele processo. Naquela noite ficamos diante de uma perplexidade muito grande.

Em toda a sua história, o Brasil nunca teve um período de democracia tão plena, ampla e duradoura como o destes 20 anos. Que elementos contribuíram para construir essa democracia?

Acho que dei um pouco a minha contribuição, pelo meu temperamento. Quando assumi o governo, com certa tranqüilidade e grande paciência consegui que nossas forças se congregassem. E, mais do que isso, nós criamos uma sociedade democrática. Acho que o Plano Cruzado não foi só uma medida econômica. Teve uma conseqüência política muito grande, porque fez o povo se sentir participante das decisões. A partir dali, a cidadania começou a crescer. Fizemos a Constituinte. Isso foi um processo de aprendizagem do povo para uma sociedade democrática e resultou na cidadania, no ingresso das classes proletárias nas decisões do governo, até desembocar na eleição de Lula.

Esse sistema está sólido?

Totalmente consolidado. Hoje o País sabe que está submetido ao poder político, a síntese de todos os poderes. E isso é muito importante, significa que realmente o poder está nas mãos do povo.

Os cientistas políticos dizem que as mudanças nos sistemas políticos devem ser pequenas e graduais. O que ainda falta mudar?

Tivemos um grande desenvolvimento econômico e social, mas o desenvolvimento político não acompanhou os dois. O processo da transição significa uma página da História na qual os políticos conseguiram cumprir um processo extraordinário para o País. Mas na realidade nós ainda temos esse débito com a legislação política. Algumas de nossas leis remontam ao século 19. Enquanto não acabarmos com o votos proporcional uninominal, que só existe no Brasil, jamais avançaremos no processo de consolidação dos partidos. Isso é a base de tudo. A partir daí, poderemos discutir o voto distrital misto. Isso vai fortalecer os partidos, vai evitar a proliferação de partidos e vai permitir que os partidos fiquem mais voltados para o trabalho congressual e para os programas partidários. A atividade político-ideológica na sociedade vai ser mais forte. Teremos uma sociedade mais democrática.

A qualidade da representação política brasileira tem melhorado?

O sistema eleitoral brasileiro é antiquado, remonta a um tempo que já desapareceu. Isso prejudica a representatividade porque com esse sistema você elege um parlamento que envelhece rapidamente. Em 15 dias ou um mês ninguém sabe o que o levou a ser eleito, porque os partidos desaparecem. A qualidade da representação tem sido resultado desse processo. O resultado é que a democracia representativa está em crise. Porque, quando os parlamentos se distanciam e não podem expressar a opinião pública, quem representa o povo? A imprensa? A mídia? A sociedade civil organizada? Nós não podemos achar que vamos mudar isso. Não, isso veio para ficar. O que nós temos é que compatibilizar o sistema eleitoral, o nosso sistema político a essa nova realidade da sociedade moderna.

Quais são os pontos fracos desse sistema político? E quais são os pontos fortes?

Durante os 20 anos da redemocratização, o que mais cresceu e se consolidou foi a sociedade democrática. A democracia representativa, durante esse período, não teve os frutos que nós esperávamos que tivesse. O que devemos fazer numa reforma política? O processo fundamental é o da escolha, o voto proporcional uninominal. Essa escolha entre o voto proporcional e o voto majoritário é a base de tudo, porque o voto proporcional leva à proliferação dos partidos. No Brasil nós tínhamos partidos regionais, os partidos nacionais vêm de 1945. Essa tradição era tão forte que quando os militares fizeram dois partidos tiveram de criar sublegendas para ressuscitar os partidos regionais. Agora nós temos, com esse processo, a volta dos partidos regionais, porque a representação não tem sido capaz de construir um sistema partidário nacional. A concentração de partidos em São Paulo é resultado disso: o centro maior se agrega sem que nós tenhamos condições de fazer com que os partidos funcionem nacionalmente.

Nota-se que o senhor está feliz com esse aniversário.

Nós completamos 20 anos sem nenhum retrocesso porque a sociedade está, cada vez mais, se consolidando com as noções da cidadania, do consumidor, a consciência dos direitos humanos. Tudo isso se formou nestes 20 anos. Tivemos 20 anos sem um instante de retrocesso, só avanços. E para nós que naquele momento inicial tivemos essa responsabilidade, e eu pessoalmente a tive amplamente, nós ficamos felizes e eu fico gratificado de ter vivido aquele instante e ter podido contribuir para que nossa sociedade pudesse se consolidar e avançar.