Título: Número de mortos nunca pôde ser calculado
Autor: Eduardo Nunomura
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/01/2005, Nacional, p. A13

Afonso Johnson, de 73 anos, é um ex-ferroviário que carrega no DNA a história da construção da Madeira-Mamoré. Neto de barbadianos, um dos 52 povos que ergueram a ferrovia na Amazônia, guarda algumas lembranças do avô. Do sofrimento para construir a reta do Abunã (mais de 40 quilômetros de trilhos assentados sobre o charco) à temida malária, Sanclair Grant passou por tudo isso desde que chegou ao Brasil em 1908. Foi mais um dos heróis jamais reconhecidos. "A nossa história está se perdendo no tempo." Houve duas fases para construir a Madeira-Mamoré. A primeira, a partir de 1870, foi de responsabilidade do coronel americano George Earl Church, que conseguira a concessão do Império brasileiro para construir a ferrovia e explorá-la num prazo de 50 anos. Habilidoso negociante, conseguiu empréstimos de ingleses e bolivianos.

Essas obras foram de 1878 a 1879. Ao fim dela, um número nunca calculado de mortos por epidemais tropicais, acidentes de trabalho e outro contingente de desertores. Só 7 quilômetros foram construídos.

Com o Tratado de Petrópolis, de 1903, construir a ferrovia tornou-se uma obrigação do governo brasileiro. Coube ao americano Percival Farqhuar tocar o projeto, cuja concessão daria o direito de 70 anos de exploração. Surgia assim a Madeira-Mamoré Railway.

Em 1907, nascia a cidade de Porto Velho, atual capital de Rondônia, com ares de modernidade. Havia água e esgoto, telefone, iluminação pública e até cinema. Mas tinha muito sofrimento.

Foram importados, em números oficiais, 21.817 trabalhadores entre 1907 e 1912. Eram espanhóis, portugueses, alemães, italianos, americanos, canadenses, sul-americanos e até hindus. Das Antilhas, vieram de Barbados, Granada, Jamaica, Martinica, Trinidad e Tobago.Tinham entre 13 e 70 anos. Morriam aos montes. Muitos barbadianos, que chegaram a criar um bairro próprio, a Barbadians Town, permaneceram no País. Hoje, há alguns descendentes deles em Porto Velho.

DECLÍNIO

O hospital da Candelária, moderno para a época, calculou a morte de 1.552 pessoas - número subestimado para muitos. O médico Oswaldo Cruz e o marechal Rondon foram ao socorro da Madeira-Mamoré. O primeiro fez um extenso dossiê para combater as epidemias. O segundo construiu o sistema telegráfico da ferrovia.

A ironia é que quando a ferrovia terminou, em 1912, a borracha da região já perdia espaço para o produto asiático. Os anos seguintes foram de constante declínio. Em 1931, o governo brasileiro assume o controle da ferrovia, quando a concessionária Brazil Railway desiste dela.

Após a sua desativação, em 1972, a ordem dos militares era dar um fim ao patrimônio da Madeira-Mamoré. Trens foram jogados no Rio Madeira, relatam ex-ferroviários. Um comerciante ganhou uma licitação para vender a sucata da ferrovia em São Paulo - operação depois embargada.

Documentos históricos foram queimados. No museu que fica no mesmo terreno da oficina, em Porto Velho, resta um pouco de sua história.

O trecho entre Porto Velho e Santo Antonio, reativado em 1981, não funciona mais. Há um projeto federal para seu tombamento, mas o processo está parado. O que se viu na Madeira-Mamoré, ou Madmamrly, como os americanos a chamavam (e daí vêm Mad Mary e Mad Maria), foi uma morte lenta e gradual.