Título: Do Guaíba aos Alpes
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Fonte: O Estado de São Paulo, 27/01/2005, Editoriais, p. A3

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu dividir-se mais uma vez entre a Disneylândia ideológica do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, e a grande celebração, em Davos, do capitalismo global e um tanto selvagem. Por suas origens e por sua longa prática de oposicionista, Lula pode até sentir uma afinidade especial com o público reunido à beira do Guaíba. Como governante, ele tem de pensar em como revolver problemas. Sem dinheiro não há investimento que sustente a expansão da economia, a criação de empregos e o combate efetivo à pobreza. Em Davos, no Fórum Econômico Mundial, estão os donos das empresas que importam do Brasil e os investidores que podem pôr dinheiro no País, além dos políticos e burocratas que negociam acordos comerciais e de cooperação.

Goste ou não goste, é principalmente para Davos que o presidente brasileiro deve se voltar, se quiser colher resultados úteis para seu trabalho. É ali, naquela cidadezinha encarapitada nos Alpes, que Lula poderá convencer investidores internacionais a pôr dinheiro nas parcerias público-privadas ou noutros empreendimentos que ajudem o Brasil a crescer.

Se o presidente não for capaz de evitar o espírito de Porto Alegre, poderá invocá-lo na sessão especial do Fórum para a qual foi convidado. Será a figura principal da sessão e só deverá dividir a cena com o executivo principal do Fórum, Klaus Schwab. Durante meia hora poderá transmitir sua mensagem ao mundo, discursando e respondendo, talvez, a algumas perguntas.

Mas será bom que não leve muito a sério o interesse do público pelas misérias do Brasil. Não se trata de escondê-las, até porque não são recônditas. Basta ser prático. Esse público até se interessa pelas causas humanitárias, mas entende sobretudo a linguagem dos negócios. Como não se imagina que o presidente Lula vá pedir contribuições humanitárias ao resto do mundo, é perda de tempo ficar prestando contas sobre como seu governo cuida da pobreza. Discurso desse tipo faz sucesso na hora, motiva aplausos e é esquecido na meia hora seguinte. Não rende um centavo para ser aplicado direta ou indiretamente a favor dos que precisam de mais educação, de melhores condições de saúde e de emprego produtivo.

O presidente Lula pode apresentar bons argumentos para mostrar que vale a pena comprar do Brasil e que investir no País pode ser bom negócio. Poderá ouvir perguntas incômodas sobre a segurança que o investidor valoriza. Será bom que responda com franqueza e que ele mesmo reflita seriamente sobre essas perguntas, se aparecerem. Afinal, ainda não está liquidado o debate sobre como devem funcionar as agências reguladoras e isso é parte importante da questão da segurança - sobre a qual acaba de ouvir oportuna observação do presidente espanhol, José Luis Zapatero.

Aproveite a boa vontade com que será tratado pelos interlocutores. Seu governo ganhou preciosa reputação de seriedade financeira e monetária, graças, principalmente, ao trabalho de ministros que não levam a sério o terceiro-mundismo nem o esquerdismo de velho estilo que caracterizam a maior parte do governo. Usada com realismo, essa boa reputação pode ser um ativo altamente rendoso num ambiente como o de Davos. Outros governantes o descobriram antes de Lula e souberam usar esse recurso.

A viagem poderá ser menos proveitosa, no entanto, se o presidente repetir, em seus pronunciamentos, as fantasias que recheiam o texto lamentável publicado com sua assinatura na revista Global Agenda, editada pelo Fórum Econômico Mundial. Parte dessas fantasias, como a da reforma da geografia comercial e econômica, é apenas cômica e não será levada a sério por uma platéia mais cosmopolita e mais bem informada. Muitos dos participantes dessa platéia - especialmente os que comandam os investimentos internacionais - sabem também que não foi o governo anterior, ao contrário do que é sugerido no artigo, que empurrou o País na direção do abismo em 2002. Essa parte do público sabe também que algumas das fantasias, como essa, não são apenas cômicas, mas também mesquinhas. Enfim, o presidente acertará se usar o bom senso - que o levou a respeitar a austeridade fiscal e monetária - e entender que em Davos, ao contrário do que acontecerá nas margens do Guaíba, não estará diante de um público que leva a sério arroubos e bravatas de um terceiro-mundismo requentado.