Título: O resultado da semeadura
Autor: DORA KRAMER
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/02/2005, Nacional, p. A6

Se o senhor e a senhora não forem petistas militantes nem governistas praticantes, fiquem tranqüilos porque a eleição do deputado Severino Cavalcanti para a presidência da Câmara não lhes provocará aflição alguma ao corpo ou ao espírito. Não há sinal de crise (a não ser existencial), o caos nem de longe ameaça a República; está tudo hoje tão absolutamente igual a ontem que a desmoralização dos partidos e das práticas políticas não sofreu alteração - continua gigante pela própria natureza.

O que houve na madrugada de segunda para terça-feira em Brasília foi, objetiva e resumidamente falando, a derrota da conjugação de incompetência, arrogância, inoperância, ignorância política e displicência institucional que o PT adotou como cartilha de operação governamental.

Nada ocorreu além do esperado resultado de uma semeadura de dois anos de equívocos cometidos por um partido cujo tempo de serviço na oposição não serviu de atestado de eficácia para o exercício do poder.

Foi alvo de uma forra, colheu o que plantou e não tem nem a desculpa de que esteja diante de um acontecimento inédito. Repetiu-se no Parlamento o ocorrido nas urnas há alguns meses, quando os petistas sofreram perdas resultantes do mesmo tipo de erros.

Na ocasião, o partido ensaiou atos de contrição, reconheceu que governo não faz política sem cumprir compromissos, sem compartilhar espaços, sem respeitar limites, sem reconhecer no outro algum valor, sem observar o mínimo de princípios, sem a prudência de perceber que à sua ação sempre corresponderá uma reação.

O episódio da Câmara serve outra vez de oportunidade ao PT e ao governo para refletir e se corrigir. Se quiser e souber fazer isso, poderá até restabelecer sem problemas suas boas relações com o Parlamento.

Se, ao contrário, mantiver a linha da soberba e perder-se em justificativas irreais, pode se preparar para novas e mais profundas derrotas, sendo a maior delas a eleição de 2006.

O partido, certamente por presumir-se melhor que os outros, partiu do pressuposto de que ter o poder bastaria, seria uma salvaguarda contra tudo e contra todos. Funcionaria como habeas-corpus preventivo à quebra de qualquer tipo de regra escrita ou presumida.

Da maneira mais dolorosa possível - uma derrota completa sob qualquer ângulo de visão - foi posto de novo diante da realidade e, se não for mouco ou míope, tomará consciência de que a banda nem sempre toca como quer o general.

Aconteceu com o PT um fenômeno esquisito. Fez fama e carreira pregando o combate à podridão e acabou sendo vítima da visão distorcida que sempre teve do poder e da imagem que ajudou a criar a respeito dos meios e modos da política.

O emblema disso é a notória frase a respeito dos "300 picaretas" da qual Lula jamais se livrará.

O PT construiu estereótipos e, uma vez no governo, limitou-se a pular para dentro daquele cenário pintado com cores fortes e sem nuances; passou a agir como acreditava que agissem os poderosos: sem escrúpulos nem limites, tomando como ponto de partida a preliminar de que ao poder todos se rendem, o poder a todos corrompe, o poder tudo pode.

Não há, nesses conceitos, verdades absolutas. Governos têm seus limites, a existência da corrupção não faz da atividade política um ajuntamento de corruptíveis, o poder não necessariamente invoca subserviência. Ao contrário, se bem dosado e pesado, pode inspirar muito respeito.

O partido de Lula não entendeu coisa alguma a respeito desde o início. A própria ilusão de que a expulsão exemplar dos primeiros rebeldes calaria as divergências e imporia por si só a disciplina é prova disso.

Ontem havia gente respeitável presa a um outro tipo de crença tola, usada para explicar a derrota dos dois candidatos do PT, o oficial e o paralelo.

A tese é a de que os males de hoje são produto do escândalo Waldomiro Diniz, pois o caso enfraqueceu o ministro da Casa Civil e afastou José Dirceu da articulação política.

Fosse a vida assim tão simples, Dirceu teria ele próprio se recuperado, tendo produzido uma campanha municipal estrategicamente brilhante e obtido para o PT resultados eleitorais excelentes. Ninguém mais falaria em Waldomiro.

O problema é exatamente o inverso: os motivos pelos quais um governo nomeia como seu principal interlocutor no Congresso um homem capaz de extorquir bicheiro são os mesmos que fazem esse governo construir uma relação deformada com o Parlamento.

O Legislativo pode até ser , e é, um poder submisso ao Executivo. Mas não gosta e reage quando o Planalto escancara seu poder de manipulação e não dá ao Parlamento pelo menos o direito de fazer de si um melhor juízo.

Relações conflituosas entre parlamentos e palácios são sempre desvantajosas para os últimos. Fernando Collor, por exemplo, muito provavelmente teria tido outro destino não fosse a presunção de que o Congresso se controla a poder de chicote, verbas do Orçamento, esgarçamento da imagem do político e exaltação da figura do presidente-redentor.

Lula ganhou de presente da Câmara chance de ouro para enxergar o que viu e compreender o que ouviu.