Título: O papa e a controvérsia sobre a renúncia
Autor: Jarbas Passarinho
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/02/2005, Espaço Aberto, p. A2

Convivi fraternalmente com padres, bispos e cardeais. Sempre lhes admirei a absoluta reserva que mantinham, mesmo em momentos de intimidade, em relação aos assuntos internos da Igreja. Um dia, imprudentemente, referi-me aos rumores que cercavam o súbito falecimento de João Paulo I, pontífice apenas por 33 dias. A resposta, breve, expressou a indignação pela "imaginação caluniosa dos homens". De outra feita, ao ler A Marcha da Insensatez, da escritora Barbara Tuchman, chocou-me a narrativa constante do capítulo Os papas da Renascença, seis pontificados pintados como "extremos de venalidade, amoralismo, avareza e poderio político fantasticamente calamitoso", que teriam gerado o cisma de Lutero. Perguntei a um bispo amigo se tinha lido o livro. "Não, nem lhe dou valor histórico", foi a sucinta resposta.

Estranha-me ver, agora, o entrechoque de opiniões de cardeais a respeito de ser imperativa ou não a renúncia de João Paulo II. O virtuoso cardeal emérito da São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, em entrevista publicada no Estado de 13 do corrente, é pela renúncia, "para que a Igreja possa acompanhar o movimento da História". A Cúria Romana acha que só ao papa cabe decidir. A entrevista, porém, aprofunda muito mais o conflito entre dom Paulo e a Cúria Romana, cuja conduta é por ele retratada de modo nada edificante. Não que se compare aos tempos da Renascença, do despudor e da simonia, mercantilizando as indulgências. Isso são águas totalmente passadas, mas não o jogo de intrigas na luta pelo poder, usando meios degradantes.

Um exemplo nos dá dom Paulo ao revelar o ocorrido na sua última visita oficial ao papa, quando deixava a Arquidiocese de São Paulo. Ao se levantar para despedir-se, o papa lhe disse que tinha uma carta para ele, cujo texto desconhecia, pronta para receber sua assinatura. Dom Paulo, então, propôs ao papa que a lessem juntos. "Era um memorando de três páginas", descreve-o dom Paulo, "com vários tópicos, escrito em português, totalmente contrário a mim. Comecei a ler, traduzindo para o alemão palavra por palavra. Na altura do terceiro parágrafo, o papa se indignou e disse: 'Eu não assino. Nunca falei isso de você, Paulo, e nem quero afirmar isso.' E jogou o papel no chão. Eu o apanhei. Daí João Paulo II determinou que eu mesmo escrevesse duas linhas, dizendo que ele considerava respondidas - satisfatoriamente por mim - as questões apresentadas no documento, sem nada a declarar." O papa assinou a carta. Mas não a recebeu dom Paulo, que conclui: "Um documento que está por aí."

Outra passagem intrigante, revela-a dom Paulo. Foi ele durante oito anos, a partir de 1993, secretário do Sínodo dos Bispos, em Roma, cabendo-lhe redigir as conclusões do sínodo, o que "não foi levado em consideração". E acrescenta: "Nada saía do que escrevíamos." Por quê? O cardeal esclarece: "Naquela época o papa mesmo redigia, ou mandava redigir, a versão final dos sínodos." A repórter pergunta incisivamente: "O senhor está dizendo que o papa mudou as conclusões dos sínodos?" Dom Paulo responde: "Ele as formulava de tal maneira que não era o que refletíamos nas discussões." É inevitável concluir que o papa discordava das conclusões de dom Paulo.

A ilação é lógica: o papa devia ter outras informações em que se baseava. Da Nunciatura, certamente. Tanto que dela se queixa dom Paulo, pondo em evidência os bastidores da Igreja: "A Nunciatura não aceitava a oposição que (eu) fazia ao governo." Talvez aí esteja a explicação, já que, ao ouvir dom Paulo fazer-lhe a descrição da situação política do Brasil, "o papa costumava compará-la com o que ocorrera na Polônia e na União Soviética, países que também atravessaram regimes totalitários". Depreendo daí que a Nunciatura não igualava o regime autoritário brasileiro (mesmo quando vigente o AI-5) às ditaduras de Stalin e de Hitler, que, de resto, o papa, quando bispo de Cracóvia, conhecera e sofrera na Polônia, ora ocupada tiranicamente pelos nazistas, ora pelos comunistas. O núncio, o canal diplomático do Vaticano, precatava-se da paixão no julgamento. A Teologia da Libertação sempre foi apoiada pelo cardeal, que cita uma carta do próprio papa, trazida ao Brasil pelo prefeito da Congregação dos Bispos de Roma e lida na CNBB, considerando a Teologia da Libertação "não só oportuna, mas necessária à evolução teológica da Igreja". Aduz ele: "Nos últimos tempos, foram emitidos por Roma dois documentos muito negativos" quanto à Teologia da Libertação. Perguntado se o papa teria mudado, o cardeal explica: "João Paulo II sempre foi um homem de coração dividido." E concede: "Como todos nós, de alguma forma." A discrepância mostra bem a inutilidade da velha locução latina Roma locuta, causa finita.

Afora as diferenças com a Cúria Romana, dom Paulo, que nunca teve "preferência pelo comunismo nem pelo capitalismo, mas por uma terceira ordem" (que não define), também não está satisfeito com o governo Lula. Incisivo, busca um exemplo da decepção: "Cortar verbas sociais, para melhorar a situação do Exército." Os vencimentos de um general, ao fim de 40 anos de serviço e todos os sucessivos cursos do Exército, são iguais ao de um jovem procurador da República no início de sua atividade. O cardeal acha justo o exemplo com os militares. Outros prefeririam economizar US$ 56 milhões, gastos no superavião presidencial, para que o governo não corte 60% - como cortou - da verba do programa Paz no Campo.