Título: Prospecções imperialistas
Autor: Daniel Litvin
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/01/2006, Aliás, p. J6

Crise na Ucrânia mostra que é a política, e não o mercado, que define os métodos de ação para a energia global

Você talvez tenha pensado que a época dos impérios tivesse se acabado, que as relações mundiais globalizadas entre os países agora estivessem sendo regidas pela economia, pelas forças do mercado e pelo livre comércio, em vez de pelas brigas por influência política entre as grandes potências. Mas, quando se trata do abastecimento de energia e seu controle, ainda vivemos num mundo que é parcialmente do século 19. Em comparação com a situação do início da semana, a tentativa da Rússia de mais que quadruplicar o preço do gás cobrado da Ucrânia já não está afetando tão seriamente outros países europeus como antes. Não obstante, a Rússia continua a dificultar o fornecimento de gás para a Ucrânia, exercendo uma asfixia sobre o país que parece ser motivada por questões tanto econômicas como políticas.

Contrariada com a recente inclinação da Ucrânia na direção do Ocidente, inclusive da Otan e da União Européia, a Rússia quer trazer de volta à esfera de sua influência o antes Estado vassalo. Há muito ela vem oferecendo energia subsidiada a países para mantê-los dentro de seu rebanho. A ameaça de elevar os preços do gás fornecido à Ucrânia para os níveis do mercado livre é o equivalente moderno a um tiro de advertência disparado de um navio de guerra imperial russo.

Mas a Rússia não está sozinha em tratar a garantia de energia como um meio, ou um motivo, para empreitadas estilo imperialistas. A busca por influência sobre as reservas de petróleo e de gás está subjacente à mais recente intervenção ocidental no Oriente Médio e tem impulsionado acontecimentos políticos relevantes na América Latina e na Ásia Central. Temos de reconhecer esse imperialismo da energia como um fato do mundo moderno, pois somente assim podemos encontrar meios de abrandar seus efeitos desagradáveis.

Há duas formas de imperialismo enérgico moderno. Na primeira, tipificada pela Rússia, os produtores usam seu poder sobre os suprimentos ou sistemas de transporte de energia para influenciar resultados políticos. Um exemplo foi quando a Opep, o cartel de produtores de petróleo do Oriente Médio, restringiu os suprimentos de petróleo na década de 70 com o objetivo parcial de mudar a política ocidental em relação à região.

Hoje em dia, dois países latino-americanos produtores de petróleo estão usando a energia como ferramenta para fazer frente ao Ocidente imperialista. Hugo Chávez, da Venezuela, ameaçou interromper o envio de petróleo para os Estados Unidos e está usando sua produção abundante para conquistar apoio político. Na Bolívia, Evo Morales recentemente conquistou o poder com suas promessas de retirar das multinacionais o controle das reservas de gás e estatizá-las.

A segunda forma desse imperialismo acontece quando países consumidores lançam mão de manobras políticas ou militares para garantir o fornecimento. Se há dúvidas se os Estados Unidos e a Grã-Bretanha invadiram o Iraque com a sincera crença da existência das armas de destruição em massa, ninguém duvida de que os temores em relação à garantia de suprimento de petróleo teve papel nos cálculos estratégicos, particularmente depois que o 11 de setembro abalou muito a confiança do Ocidente na Arábia Saudita.

Agora, com os preços do petróleo tão altos e muitos campos petrolíferos ocidentais em declínio, empresas e governos ocidentais estão trabalhando em conjunto (pacificamente desta vez) para esquadrinhar novos territórios a fim de reduzir a dependência do Oriente Médio. Em torno do Mar Cáspio, os interesses políticos ocidentais mais uma vez entraram em conflito com os da Rússia - a rota de um novo oleoduto do Azerbaijão à Turquia, por exemplo, foi objeto de grande divergência geopolítica entre Ocidente e Oriente. Japão e China também estão discutindo sobre as rotas de oleodutos oriundas das reservas de energia do extremo leste da Rússia, enquanto as empresas petrolíferas da China buscam fazer alianças com governos do Oriente Médio e africanos.

Um motivo pelo qual a energia ajuda a ressuscitar o impulso imperialista dos países consumidores é que, apesar de todo o crescimento dos mercados e do comércio livre, paradoxalmente a garantia do abastecimento de energia é de extrema importância no funcionamento das economias capitalistas para que seja deixada inteiramente à mercê das forças do mercado. Nossos sistemas econômicos compreendem um enorme investimento em infra-estrutura (incluindo rodovias, carros, prédios e usinas de energia) que depende dos combustíveis fósseis. A tentação imperialista dos produtores está relacionada com isso, pois as forças políticas daí advindas podem ser poderosas demais para resistir.

A questão aqui não é apenas a concentração geográfica dos suprimentos de combustível fóssil, mas a natureza imóvel e monopolista da infra-estrutura de energia - oleodutos que abastecem nações inteiras podem ser ligados e desligados dependendo de um capricho político.

A inevitabilidade do moderno imperialismo da energia precisa ser admitida. Para os países consumidores, a garantia do abastecimento de energia precisa ser alcançada de uma maneira que melhor atenda aos interesses dos países produtores, em vez de assumir a forma do apoio ocidental a regimes condescendentes, mas corruptos, ou invasões mal planejadas, que provocam mais violência.

E os países produtores devem ser incentivados a compreender que seu interesse de longo prazo freqüentemente é mais bem atendido quando trabalhando em conjunto com os países consumidores, em vez de impor-lhes ultimatos. A tática implacável da Rússia em relação à Ucrânia causou danos à sua credibilidade como fornecedora garantida dos grandes consumidores europeus.

O petróleo e o gás vão acabar sendo substituídos por fontes de energia renováveis, mas, por enquanto, o imperialismo da energia está aí para ficar, e devemos concentrar esforços para torná-lo de alguma benéfico.