Título: Liberdade para os traficantes
Autor: Agenor Nakazone e Nelson Lacerda Gertel
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/01/2006, Espaço Aberto, p. A2

Em artigo recente, anunciamos que a Justiça Criminal estava a caminho da falência (Estado, 30/7) e queremos, agora, informar que mais um passo, decidido e grande, foi dado em direção ao abismo. Essa marcha decidida rumo ao descrédito total das instituições foi de novo impulsionada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), instância que reiteradamente, como é público e notório, deixa de cumprir sua importante função constitucional de tribunal pacificador.

Não é preciso ser do ramo para saber que o mundo do Direito é também a terra da opinião. Para cada tema jurídico há muitos pontos de vista, que costumam mudar com notável freqüência. Ninguém, hoje em dia, minimamente informado, entraria num processo com a certeza absoluta de que seu direito seria, seguramente e finalmente, reconhecido pela Justiça.

Porém, nesse universo de incertezas, existiam algumas opiniões convergentes a respeito de reduzidos temas, algum consenso sobre poucas questões. Por exemplo: havia concordância quando se afirmava que o tráfico de drogas era crime grave e deveria ser reprimido com severidade.

Talvez esse ponto de vista comum tenha surgido da simples observação de uma realidade incontestável: Estados complacentes com o tráfico de tóxicos foram transformados em "narcoestados" e sociedades tolerantes com ele tiveram seus valores fundamentais "fumados, cheirados e injetados".

Sucedeu, no dia 27 de setembro, que no Brasil essa opinião a respeito da gravidade do crime de tráfico de drogas e sobre a necessidade da sua severa punição mudou completamente. E a mudança não veio com a fala relutante de gente comprometida e que quer aparecer com escândalos, mas sim com a voz grossa, paterna e de grande autoridade representada pelo STF.

Aconteceu o seguinte: a Primeira Turma do Supremo, por votação unânime, possibilitou a substituição da pena de prisão aplicada ao traficante de entorpecentes por pena restritiva de direitos, como, por exemplo, a pena de prestação de serviços à comunidade (HC 84.928-8/MG, DJU 7/10/2005).

Ou seja, o Supremo entendeu que uma pena restritiva de direitos, suave, amena e singela, é suficiente para a reprovação e prevenção do delito de tráfico de drogas.

Assim, com a bênção do Supremo, os traficantes de entorpecentes condenados a uma pena de prisão de até quatro anos não irão mais para a cadeia. E esse tribunal sabe que a imensa maioria dos traficantes recebe a pena mínima, que é menor que a de quatro anos de reclusão.

Diante do que resolveu o Supremo, os traficantes, depois de condenados, irão muito tranqüilamente para casa, sendo perfeitamente possível, por mais absurdo que pareça, que os réus responsabilizados por tráfico de tóxicos na porta de uma escola sejam "obrigados" pela Justiça Criminal a prestar serviços na mesma escola.

Com a nova opinião da Justiça Criminal, que equiparou o tráfico a crimes de menor gravidade, tais como lesões corporais, furtos e apropriações indébitas, é óbvio que os crimes de tráfico de drogas, que representam aproximadamente 25% dos processos criminais em andamento no Estado de São Paulo, além de serem o repetido fundamento de inúmeros outros delitos, irão aumentar notavelmente.

De modo que, em vez de combater a grave criminalidade, a opinião suprema da Justiça Criminal faz exatamente o contrário, incentivando os traficantes a continuarem, nas "comunidades" em que lucram, nas escolas, nas favelas, ou seja, em todos os locais em que há grande concentração de pessoas, com o seu nefasto comércio.

Com esse entendimento, o assaltante com arma de fogo será preso. O traficante, não. Aquele pratica crime que, às vezes, atinge o patrimônio de uma só pessoa. Este destrói sempre, não só o infeliz do viciado, mas toda a sua família e tudo à sua volta.

O assaltante dificilmente pratica mais que um crime por dia. Os traficantes vendem droga diariamente e para muitas pessoas. O assaltante é reconhecido pelas vítimas e costuma ser punido. Os traficantes, em razão do medo que inspiram e porque são conhecidos e muitas vezes até líderes em suas comunidades, raramente são reconhecidos.

Nesse contexto, sem dúvida do conhecimento do Supremo, os criminosos mais perigosos é que serão tratados com benevolência pela Justiça Penal. Para eles, pelo menos, por mais que os cidadãos honestos tentem ensinar o contrário para os seus filhos, o crime compensa.

Impossível aceitar passivamente a nova orientação porque nem de longe ela se ajusta ao conteúdo da Constituição e da Lei Antitóxicos. O empenho na prevenção e repressão do crime de tráfico de drogas é previsto no texto dessas leis. Elas estabelecem que é dever de todos colaborar na prevenção e repressão ao tráfico, que é crime considerado assemelhado aos hediondos, inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.

Tudo isso sem contar que o argumento do legislador para justificar as chamadas "penas alternativas", dentre elas a restritiva de direitos, foi o de que a prisão deve ser reservada para os que cometem crimes graves e cuja periculosidade recomende seu isolamento da sociedade. Somente para os crimes de menor gravidade, segundo o legislador, é que a melhor solução seria impor restrições aos direitos do condenado, e sem retirá-lo do meio social.

Nós, o povo, as vítimas, os procuradores de Justiça incumbidos da defesa dos interesses da sociedade, não podemos aceitar o estabelecimento da impunidade ampla, geral e irrestrita.

Em síntese: o STF transformou o tráfico de drogas em crime banal e entendeu que a liberdade basta para punir traficantes. Digamos assim: ao estabelecer, por seu entendimento, que os traficantes podem ser punidos com a liberdade, a Justiça Criminal quer apagar o incêndio no ônibus queimado no Rio de Janeiro jogando mais gasolina sobre as chamas e sobre as vítimas.